Comentário ao Acórdão de Tribunal
Constitucional N.° 403/2007
Processo N.° 535/04
O Acórdão em análise versa sobre uma realidades trágica e inquietante da
violação de autodeterminação sexual de duas menores perpetrado por um senhor de
62 anos de idade que usufruía dum mini poder económico, e com este, tencionava
garantir o silêncio dos familiares, evitando assim uma queixa por parte deles e,
concomitantemente, os seus consentimentos relativamente ao ato criminoso.
Ora colocou-se o problema na esfera da
fiscalização concreta da constitucionalidade (…porque deu-se nos «feitos submetidos a julgamento», no processo em curso em
tribunal, incidentalmente, não a título principal),
servindo do artigo 70/1, b) da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional, solicitando deste modo a apreciação da constitucionalidade
das normas dos artigos 113°, n° 6 e 178°, n° 4 ambos do Código Penal, doravante
CP, por suposto atropelo aos artigos 25°, n° 1, 26°, n° 1 e 29 da Constituição
da República Portuguesa, em diante CRP.
Feita uma leitura atenta de todos os factos
apresentados e de toda a fundamentação nos dois sentidos, muito não se oferece
a dizer sobre este acórdão que considero ser extenso e completo, se quiser:
«não tem muito sentido pintar acima do já pintado ou embelezar o belo».
Verifica-se que tanto do lado do arguido, assim como do ministério público
havia indícios fortes que inculcavam a reconhecer a veracidade das várias
formas de interpretar a lei. Alguns argumentos utilizados chegam a ser muito
convincentes, não só pelas suas redações, mas também pela ampla consulta da
doutrina e jurisprudência o que, ao cabo e ao resto, serviram de mecanismos de
balizamento do entendimento do Tribunal Constitucional.
A abordagem que propomos fazer sobre o supra
referido acórdão passa necessariamente por: 1-Sumário, 1.1-Recenseamento
dos argumentos de peso de ambas as partes, 2-Descortinar
o enigma sobre quem visa defender altruistamente os interesse das menores in
caso e 3-Posicionamento Pró ou
contra o tribunal constitucional e a respetiva conclusão.
1-
Sumário
Após a comunicação feita pela comissão de proteção de crianças e jovens de
Oliveira de Azeméis ao representante do ministério público da mesma comarca de
Albergaria-a-Velha, este último, resolveu instaurar procedimento criminal
contra o denunciado nos termos do artigo 178°/4 do Código Penal, acusando assim
o arguido de praticar os crime de abuso sexual de crianças previsto e punido
pelo artigo 172º/2 CP-em relação a menor A., e de crime de atos sexuais com
adolescentes, também previsto e punido pelo artigo 174º CP-em relação a menor
B.
A intervenção do Ministério Público simboliza a obrigação constitucional
da sociedade, em geral e do estado, em particular em proteger as crianças
(artigo 69 de CRP) e doutro lado reitera a importância do ministério público na
defesa de interesses dos menores, de acordo com o plasmando no artigo 3º /1, a)
do Estatuto do Ministério Público. Terminado o inquérito, em 7 de maio de 2003,
deduziu-se a acusação contra C (o arguido-violador) imputando-lhe a autoria
material em concurso real de forma consumada e continuada de abuso sexual de
crianças e de atos sexuais com adolescentes e contra D (a mãe da vítima A)
imputando-lhe a autoria material, de forma consumada e continuada, de um crime
de lenocínio de menores-art 176/3 e 177/1, a).
Não tendo existido o RAI (Requerimento para a Abertura da Instrução) o
processo seguiu para julgamento onde antes do início da audiência os pais da
menor B declararam ter desistidos da queixa contra o arguido C, da mesma forma
veio a mãe da menor A, a declarar ter desistido da queixa contra o arguido C,
face a não oposição do arguido e do representante do ministério público na
altura, o Juiz Presidente do Tribunal Coletivo considerou válidas as
desistências e declarou extinto o procedimento criminal contra o arguido C. No
prosseguimento de julgamento apenas contra a arguida D, surgiu o acórdão de
tribunal colectivo da comarca de Albergaria-a-Velha, de 29 de Setembro de 2003
que também absolveu a arguida por considerar não ter sido provados os factos
integradores do crime de lenocínio por que vinha a ser acusada.
Na mesma esteira, e pouco tempo depois, foi designado o novo magistrado
do ministério público para intervir no processo, a quem veio manifestar a sua
inconformação com a extinção do procedimento criminal contra o arguido C e a
validade das desistências, pelo que resolveu interpor o recurso para o tribunal
de relação de Coimbra ao que veio a ser julgado procedente, revogando assim o
despacho recorrido, por não ser admissível a desistência de queixa, devendo o
julgamento prosseguir para a apreciação dos factos imputados ao arguido (cfr no
acórdão do T R de Coimbra de 10 de Março de 2004 ).
Chegados aqui estamos em condições de passar para o ponto a seguir do
comentário.
1.1- Recenseamento dos argumentos de peso de ambas
as partes.
Importa reflectir profundamente sobre a formulação das conclusões do Magistrado
do MP que, de resto, dúvida não deixou, se não - confiramos:
▬ …no caso sub júdice, foi
o Ministério Público que, depois de ter tido conhecimento dos factos em causa,
através de uma participação da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de
Oliveira de Azeméis, deu início ao procedimento criminal contra o arguido C.,
ao abrigo da norma do artigo 178.°, n.º 4, do Código Penal, invocando o interesse
das vítimas, menores de 16 anos, que ficaram ambas grávidas do arguido…
▬ Em momento
algum do processo, os representantes legais das menores ofendidas
apresentaram queixa contra o arguido ou manifestaram vontade em fazê-lo, pelo que não tinham legitimidade para, no início da audiência
do julgamento, desistirem da queixa contra o arguido.
▬ É que, nos termos do artigo 116.º, n.º 2, do Código Penal, só o queixoso,
isto é, quem tenha legitimamente exercido o direito de queixa, pode desistir da
queixa.
▬ Ora, tendo o
presente processo sido iniciado, oficiosamente, pelo Ministério Público, no
interesse das vítimas, o respectivo procedimento criminal deixou de estar na
disponibilidade das ofendidas ou dos seus representantes legais (cf., nesse
sentido, o acórdão da Relação do Porto, de 31 de Janeiro de 2001, in
Colectânea de Jurisprudência, ano XXVI, tomo 1, p. 232).
▬ Mal andou, por conseguinte, o Tribunal colectivo, ao considerá‑las válidas
e relevantes, declarando, em consequência, e sem mais, extinto o procedimento
criminal contra o referido arguido, sem ter em atenção a forma como se tinha
iniciado o processo e sem cuidar se tais desistências iam de encontro aos
interesses das menores ou se, pelo contrário, visavam outro tipo de interesses.
▬ Para além do mais, não se vê que o interesse das menores justificasse o
passar uma esponja sobre o sucedido, uma vez que estamos perante uma situação
clara de predominância do interesse do procedimento criminal sobre o do
segredo, dado que a divulgação dos factos foi tão extensa, nomeadamente na
comunicação social, que já não há, neste momento, intimidade alguma a
preservar ou danos acrescidos a evitar (Numa situação algo idêntica, vide o
acórdão da Relação de Coimbra, de 26 de Fevereiro de 2003, no proc. n.°
3910/02, da 2.ª Secção, sendo relator o Desembargador Barreto do Carmo).
▬ Por outro lado, não deixa de ser chocante que o arguido, homem maduro, com
62 anos, pai de filhos, que exibia poder económico, não tenha sido submetido a
julgamento pelos factos gravíssimos pelos quais se encontrava suficientemente
indiciado, apenas devido às desistências de queixa que, ilegitimamente, os
representantes legais das menores apresentaram, sendo certo que, no caso da
menor A., a sua representante legal foi a sua mãe, D., co‑arguida neste mesmo
processo, acusada de um crime de lenocínio de menores, previsto e punido pelos
artigos. 176.º, n.º 3, e 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
▬ O Tribunal Colectivo interpretou, assim, em nosso entender, erroneamente
a lei e, devido a essa deficiente interpretação, violou, entre outros, os
artigos 178.º, n.ºs 1 e 4, 116.º n.º 2, e 113.º, n.º 6, todos do Código Penal.”
Com a mesma profundeza reflitamos sobre as formulações
de conclusões por parte do arguido, que, dentre vários fundamentos destacamos:
▬… Nunca o princípio da subordinação hierárquica poderá ser entendido no
sentido de o Ministério Público poder, através do magistrado titular do
processo, declarar, expressa e ponderadamente, em audiência de julgamento, que
não se opõe à desistência de queixa e, volvidos alguns dias, vir esse mesmo corpo
de Magistratura, pela mão de um Procurador substituto, declarar que não se
conforma com a decisão do Colectivo que acolheu a sua própria promoção, num
autêntico venire contra factum proprium, fazendo do processo um uso
manifestamente reprovável, a configurar abuso de direito e litigância de má fé.
▬ Com uma tal interpretação, as normas dos artigos 2.º, n.º 2, 68.º, n.º 1, e
76.º, n.ºs 1 e 3, do Estatuto do Ministério Público e do artigo 401.º, n.º 1,
alínea a), do Código de Processo Penal seriam materialmente
inconstitucionais, por violação do artigo 219.º da CRP.
▬ Aquela previsão legal foi estabelecida para os casos em que o Ministério
Público, tendo conhecimento da prática do ilícito sobre menor de 16 anos,
porventura antes mesmo dos progenitores, e perante a gravidade da situação, dá
início ao procedimento por forma a, em tempo útil, fazer a recolha de provas ou
indícios que, com o decorrer do tempo ou a acção humana, corriam o risco de se
perder, por entender que o interesse da vítima o impõe.
▬ Mas isso não significa que se tenha afastado a possibilidade de a vítima,
ou os seus legais representantes, decidirem o que é mais relevante para o
interesse daquela: se o prosseguimento da acção penal, se o recato e esquecimento
que melhor se atingem sem ela.
▬ Não é inaceitável que os progenitores, titulares e em pleno exercício do
direito de queixa, venham pôr termo ao procedimento criminal por entenderem
que essa é a atitude que melhor defende os interesses do menor, que justificaram
a natureza semi‑pública deste tipo de crimes, e o Ministério Público,
teimosamente, os procure contrariar, insistindo no seu prosseguimento movido
por razões ou interesses que podem não coincidir com o das vítimas.
▬ Um tal entendimento redundaria na inconstitucionalidade material dos
artigos 113.º, n.º 6, e 178.º, n.º 4, do Código Penal, por violação do disposto
nos artigos 25.º, n.º 1, e 26.º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.”
2- Descortinar
o enigma sobre quem visa defender altruistamente os interesse das menores.
Imbuído pelos fundamentos acima recenseados,
cumpri-nos o dever de, numa forma cabal, dessecar entre: I- o desacerto detetado
na fundamentação de ambas partes, II- melhor salvaguarda dos interesses das
menores e III- a respetiva omissão na reclamação de prosseguimento do
procedimento criminal contra a arguida D, por parte do novo magistrado
designado para o processo.
I
Da parte do Ministério Público consideramos
desacertado a postura do primeiro magistrado que encarregou do processo na
medida em que consentiu a validade das desistências de queixas por parte dos
representantes legais pactuando ostensivamente com a impunidade, pese embora a
posição de ministério público veio a ser afirmado pelo segundo magistrado o que
em certa medida mexe com a segurança jurídica e a certeza jurídica, uma vez que,
sempre que para o processo seja nomeado o novo magistrado corre-se o risco de
interposição do recurso, contudo com isso não se advoga a passividade perante
as atitudes incorretas dos antecessores.
Da parte do arguido, não nos parece
sindicável o facto de ter depositado a total confiança na natureza semipúblico
do crime, por achar que por ser assim já ilegítima a intervenção do ministério
público, na verdade se isso fosse certeiro estaria a abrir uma enorme válvula
escapatória aos agentes do crime, na justa medida em que se limitariam a rezar
para que haja a desistência para saírem ilibados do processo. É notório que
existem enésimos circunstancialismos que motivam a rápida desistência dos
representantes legais que se prendem com subornos, cansaços ou falta de
paciência para aturar as maratonas processuais e receios da má aplicação do
direito que acarretará o pagamento das custas judiciais.
Para terminar, lembra Maia Gonçalves que no
ratio legis da norma em questão está uma preocupação no sentido de reforçar a
proteção do menor, atenta a sua especial vulnerabilidade e a falta de proteção
familiar. Ora se a finalidade da norma é proteger menor da carência de proteção
familiar, ou seja de quem teria o direito da queixa, não se compreenderá que se
deixe ficar a ação penal dependente dessa queixa que se quis suprir. Daí a
imperiosa necessidade da intervenção do Ministério Público na qualidade de
defensor da legalidade e da justiça – valores que são nada mais-nada menos que
a meta visada com a repartição da natureza dos crimes em três. No fundo faz
mais sentido saltar um meio e atingir um fim do que garantir o cumprimento do
meio obstaculizando a realização da justiça ou, melhor dizendo, do fim.
II
In casu, dúvidas não há que, o ministério
público está em melhores condições de, na qualidade de um observador externo,
avaliar descomprometidamente o impacto da violação e o constrangimento que
causará na vida das menores, isto porque, ao contrário dos pais, não tem
beneficiado de nenhum suborno, tem é um interesse reflexo em defender a
legalidade e o cumprimento do castigo determinado pela conduta criminosa,
evitando desse jeito uma situação que se encaminhava para a impunidade.
Repare que ficou patente que a mãe da menor A,
só quis retirar a queixa dadas especiais relações com agente da prática do
crime, ao que tudo indica o agente terá com ela estabelecida uma relação
duvidosa. Acresce a isso o facto de, durante, muito tempo o arguido foi pagador
de todas as despesas mensais da mãe da menor A, sem contar que também foi
co-arguida no mesmo processo não só pelo crime de lenocínio, mas também por ter
facilitado o envolvimento do arguido e a sua filha, visto que consentiu que a
filha pernoitasse em casa do mesmo. Perante este enrolado todo só há uma
certeza: A mãe da vítima é uma dependente económica do arguido por isso está
vendada para a dignidade da filha, interessa-lhe mais os benefícios pessoais,
tem uma ideia viciada, a sua conduta é repugnante pelo que não se encontra em
melhores condições para defender os interesses da filha.
III
O segundo magistrado, sem embargo do seu
excelente trabalho que sustentou o recurso e que deu prosseguimento ao
julgamento, omitiu o pedido de continuação do processo contra a arguida D (mãe
da vítima A) que vinha sido indiciada como autora material, de forma consumada
e continuada, de um crime de lenocínio de menores previsto e punido pelos
atuais artigos 175/1 e 2, c). e art. 177/1, a). Imputamos esta responsabilidade
ao magistrado, não ao tribunal, porque percebe-se que o princípio de
dispositivo exige uma certa passividade dos tribunais, isto é ficam limitados
às peças fornecidas pelas partes. Ora a parte que devia aqui impulsionar o
processo nesse sentido é o ministério público, pois tem a responsabilidade de
garantir que o sistema funcione no sentido de a justiça penal ter a intervenção
(Cfr no art.219 º da CRP).
Recordamos que a arguida foi ilibada com
fundamento na falta de prova, ora essas provas podiam ser conseguidas pelo
magistrado bastando um mínimo de esforço: primeiro por via de consentimento da
arguida para que a sua filha pernoitasse na casa do arguido, segundo por
benefícios que auferia do arguido. Em suma esta mãe incumpriu os seus deveres
fundamentais plasmados nos artigos 36/5 e 67/1, in fine da CRP.
Em nosso entender podia-se levantar ainda a
questão sobre o trabalho infantil ao que a menor estava sujeita, pelas limpezas
à casa do arguido, salientando que, inclusive, constitui uma violação
constitucional flagrante segundo o artigo 69/3 da CRP. Contudo temos a
consciência que sobre esta questão o processo não ia longe porque, rapidamente,
podia ser encobertada com a ideia de solidariedade e da ajuda dos mais novos
aos mais velhos, ainda mais que quem auferia dos benefícios não era a menor (ou
se for era só reflexamente), mas sim a mãe.
3-
Posicionamento Pró ou contra o tribunal constitucional e a respetiva
conclusão.
Há que pôr acento tônico em três pontos que achamos ser a alma da vitória
do tribunal constitucional que são:
a)
Põe
cobro a estagnação do processo e consequentes adiamentos do julgamento
originado pelas interposições dos recursos e esgotou a possibilidade de recurso
no referido processo, pelo menos a nível interno.
b)
Evitou o
arquivamento do processo e consequente extinção do processo-crime que daria azo
a uma situação de impunidade imunda.
c)
Opção
pela reafirmação da importância do princípio da dignidade da pessoa humana
previsto no art. 1 da CRP, implicitamente decalcado da concordância que o mesmo
deu sobre a constitucionalidade das normas dos artigos 113, nº 6 e 178/4 do
código penal. Isto porque fixou a interpretação no sentido de: ….Iniciado o
procedimento criminal pelo Ministério Público por crime de abuso sexual de
crianças e de atos sexuais com adolescentes, independentemente de queixa das
ofendidas ou seus representantes legais …… tal era imposto pelo interesse das
vítimas, a posterior oposição
destas ou dos seus representantes legais não é suficiente, por si só, para
determinar a cessação do procedimento.
Em jeito de conclusão, parafrasear o Professor Jorge Miranda, os órgãos
de fiscalização da constitucionalidade devem raciocinar não tanto em juízos
lógico-formais quanto em juízos valorativos, procurando soluções
constitucionalmente corretas, descendo ao fundo das coisas e não se
contentando com as aparências. Nunca estará em causa apreciar a oportunidade
política desta ou daquela lei ou a sua maior ou menor bondade para o interesse
público. Estará ou poderá estar em causa a correspondência de fins, a harmonização
de valores, a inserção nos critérios constitucionais.
Por tudo até aqui sufragado a conclusão não podia ter sido outra se não
concordância com o Tribunal constitucional, que considero estar, desta e mais
uma vez, ao mais alto nível, funcionando como o barómetro do sistema e
assumindo uma posição exemplar e irrepreensível ao negar provimento a um
recurso que mais não visava se não: criar dúvidas na consciência do julgador,
protelar o desfecho do caso e a consequente condenação do arguido pelos crimes
que cometeu.
DONE BY: Ricardo Vicente Lima da Costa e Silva.
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