quinta-feira, 13 de junho de 2013

COMENTÁRIO AO ACÓRDÃO DE TRIBUNAL CONSTITUCIONAL N.° 403/2007

Comentário ao Acórdão de Tribunal Constitucional N.° 403/2007
Processo N.° 535/04

O Acórdão em análise versa sobre uma realidades trágica e inquietante da violação de autodeterminação sexual de duas menores perpetrado por um senhor de 62 anos de idade que usufruía dum mini poder económico, e com este, tencionava garantir o silêncio dos familiares, evitando assim uma queixa por parte deles e, concomitantemente, os seus consentimentos relativamente ao ato criminoso.

Ora colocou-se o problema na esfera da fiscalização concreta da constitucionalidade (…porque deu-se nos «feitos submetidos a julgamento», no processo em curso em tribunal, incidentalmente, não a título principal), servindo do artigo 70/1, b) da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, solicitando deste modo a apreciação da constitucionalidade das normas dos artigos 113°, n° 6 e 178°, n° 4 ambos do Código Penal, doravante CP, por suposto atropelo aos artigos 25°, n° 1, 26°, n° 1 e 29 da Constituição da República Portuguesa, em diante CRP.

Feita uma leitura atenta de todos os factos apresentados e de toda a fundamentação nos dois sentidos, muito não se oferece a dizer sobre este acórdão que considero ser extenso e completo, se quiser: «não tem muito sentido pintar acima do já pintado ou embelezar o belo». Verifica-se que tanto do lado do arguido, assim como do ministério público havia indícios fortes que inculcavam a reconhecer a veracidade das várias formas de interpretar a lei. Alguns argumentos utilizados chegam a ser muito convincentes, não só pelas suas redações, mas também pela ampla consulta da doutrina e jurisprudência o que, ao cabo e ao resto, serviram de mecanismos de balizamento do entendimento do Tribunal Constitucional.

A abordagem que propomos fazer sobre o supra referido acórdão passa necessariamente por: 1-Sumário, 1.1-Recenseamento dos argumentos de peso de ambas as partes, 2-Descortinar o enigma sobre quem visa defender altruistamente os interesse das menores in caso e 3-Posicionamento Pró ou contra o tribunal constitucional e a respetiva conclusão.

1-                  Sumário

Após a comunicação feita pela comissão de proteção de crianças e jovens de Oliveira de Azeméis ao representante do ministério público da mesma comarca de Albergaria-a-Velha, este último, resolveu instaurar procedimento criminal contra o denunciado nos termos do artigo 178°/4 do Código Penal, acusando assim o arguido de praticar os crime de abuso sexual de crianças previsto e punido pelo artigo 172º/2 CP-em relação a menor A., e de crime de atos sexuais com adolescentes, também previsto e punido pelo artigo 174º CP-em relação a menor B.

A intervenção do Ministério Público simboliza a obrigação constitucional da sociedade, em geral e do estado, em particular em proteger as crianças (artigo 69 de CRP) e doutro lado reitera a importância do ministério público na defesa de interesses dos menores, de acordo com o plasmando no artigo 3º /1, a) do Estatuto do Ministério Público. Terminado o inquérito, em 7 de maio de 2003, deduziu-se a acusação contra C (o arguido-violador) imputando-lhe a autoria material em concurso real de forma consumada e continuada de abuso sexual de crianças e de atos sexuais com adolescentes e contra D (a mãe da vítima A) imputando-lhe a autoria material, de forma consumada e continuada, de um crime de lenocínio de menores-art 176/3 e 177/1, a).

Não tendo existido o RAI (Requerimento para a Abertura da Instrução) o processo seguiu para julgamento onde antes do início da audiência os pais da menor B declararam ter desistidos da queixa contra o arguido C, da mesma forma veio a mãe da menor A, a declarar ter desistido da queixa contra o arguido C, face a não oposição do arguido e do representante do ministério público na altura, o Juiz Presidente do Tribunal Coletivo considerou válidas as desistências e declarou extinto o procedimento criminal contra o arguido C. No prosseguimento de julgamento apenas contra a arguida D, surgiu o acórdão de tribunal colectivo da comarca de Albergaria-a-Velha, de 29 de Setembro de 2003 que também absolveu a arguida por considerar não ter sido provados os factos integradores do crime de lenocínio por que vinha a ser acusada.

Na mesma esteira, e pouco tempo depois, foi designado o novo magistrado do ministério público para intervir no processo, a quem veio manifestar a sua inconformação com a extinção do procedimento criminal contra o arguido C e a validade das desistências, pelo que resolveu interpor o recurso para o tribunal de relação de Coimbra ao que veio a ser julgado procedente, revogando assim o despacho recorrido, por não ser admissível a desistência de queixa, devendo o julgamento prosseguir para a apreciação dos factos imputados ao arguido (cfr no acórdão do T R de Coimbra de 10 de Março de 2004 ).

Chegados aqui estamos em condições de passar para o ponto a seguir do comentário.

1.1-    Recenseamento dos argumentos de peso de ambas as partes.

Importa reflectir profundamente sobre a formulação das conclusões do Magistrado do MP que, de resto, dúvida não deixou, se não - confiramos:

no caso sub júdice, foi o Ministério Público que, depois de ter tido conhecimento dos factos em causa, através de uma participação da Comis­são de Protecção de Crianças e Jovens de Oliveira de Azeméis, deu início ao procedimento criminal contra o arguido C., ao abrigo da norma do artigo 178.°, n.º 4, do Código Penal, invocando o inte­resse das vítimas, menores de 16 anos, que ficaram ambas grávidas do arguido…
Em momento algum do processo, os representantes legais das me­no­res ofendidas apresentaram queixa contra o arguido ou manifestaram vontade em fazê-lo, pelo que não tinham legitimidade para, no início da audiência do julgamento, desistirem da queixa contra o arguido.
É que, nos termos do artigo 116.º, n.º 2, do Código Penal, só o quei­xoso, isto é, quem tenha legitimamente exercido o direito de queixa, pode desistir da queixa.
Ora, tendo o presente processo sido iniciado, oficiosamente, pelo Ministério Público, no interesse das vítimas, o respectivo procedimento crimi­nal deixou de estar na disponibilidade das ofendidas ou dos seus representantes legais (cf., nesse sentido, o acórdão da Relação do Porto, de 31 de Janeiro de 2001, in Colectânea de Jurisprudência, ano XXVI, tomo 1, p. 232).
Mal andou, por conseguinte, o Tribunal colectivo, ao consi­derá‑las válidas e relevantes, declarando, em consequência, e sem mais, extinto o procedimento criminal contra o referido arguido, sem ter em atenção a forma como se tinha iniciado o processo e sem cuidar se tais desistências iam de en­contro aos interesses das menores ou se, pelo contrário, visavam outro tipo de interesses.
Para além do mais, não se vê que o interesse das menores justifi­casse o passar uma esponja sobre o sucedido, uma vez que estamos perante uma situação clara de predominância do interesse do procedimento criminal sobre o do segredo, dado que a divulgação dos factos foi tão extensa, nomea­damente na comunicação social, que já não há, neste momento, intimidade al­guma a preservar ou danos acrescidos a evitar (Numa situação algo idêntica, vide o acórdão da Relação de Coimbra, de 26 de Fevereiro de 2003, no proc. n.° 3910/02, da 2.ª Secção, sendo relator o Desembargador Barreto do Carmo).
Por outro lado, não deixa de ser chocante que o arguido, homem maduro, com 62 anos, pai de filhos, que exibia poder económico, não tenha sido submetido a julgamento pelos factos gravíssimos pelos quais se encon­trava suficientemente indiciado, apenas devido às desistências de queixa que, ilegitimamente, os representantes legais das menores apresentaram, sendo certo que, no caso da menor A., a sua representante legal foi a sua mãe, D., co‑arguida neste mesmo processo, acusada de um crime de lenocínio de menores, previsto e punido pelos artigos. 176.º, n.º 3, e 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
O Tribunal Colectivo interpretou, assim, em nosso entender, er­ro­neamente a lei e, devido a essa deficiente interpretação, violou, entre outros, os artigos 178.º, n.ºs 1 e 4, 116.º n.º 2, e 113.º, n.º 6, todos do Código Penal.”

Com a mesma profundeza reflitamos sobre as formulações de conclusões por parte do arguido, que, dentre vários fundamentos destacamos:

… Nunca o princípio da subordinação hierárquica poderá ser enten­dido no sentido de o Ministério Público poder, através do magistrado titular do processo, declarar, expressa e ponderadamente, em audiência de julgamento, que não se opõe à desistência de queixa e, volvidos alguns dias, vir esse mesmo corpo de Magistratura, pela mão de um Procurador substituto, declarar que não se conforma com a decisão do Colectivo que acolheu a sua própria promoção, num autêntico venire contra factum proprium, fazendo do processo um uso manifestamente reprovável, a configurar abuso de direito e litigância de má fé.
Com uma tal interpretação, as normas dos artigos 2.º, n.º 2, 68.º, n.º 1, e 76.º, n.ºs 1 e 3, do Estatuto do Ministério Público e do artigo 401.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal seriam materialmente inconstitucionais, por violação do artigo 219.º da CRP.
Aquela previsão legal foi estabelecida para os casos em que o Mi­nisté­rio Público, tendo conhecimento da prática do ilícito sobre menor de 16 anos, porventura antes mesmo dos progenitores, e perante a gravidade da situa­ção, dá início ao procedimento por forma a, em tempo útil, fazer a recolha de provas ou indícios que, com o decorrer do tempo ou a acção humana, corriam o risco de se perder, por entender que o interesse da vítima o impõe.
Mas isso não significa que se tenha afastado a possibilidade de a ví­tima, ou os seus legais representantes, decidirem o que é mais relevante para o interesse daquela: se o prosseguimento da acção penal, se o recato e esqueci­mento que melhor se atingem sem ela.
Não é inaceitável que os progenitores, titulares e em pleno exercício do direito de queixa, venham pôr termo ao procedimento criminal por entende­rem que essa é a atitude que melhor defende os interesses do menor, que justi­ficaram a natureza semi‑pública deste tipo de crimes, e o Ministério Público, teimosamente, os procure contrariar, insistindo no seu prosseguimento movido por razões ou interesses que podem não coincidir com o das vítimas.
Um tal entendimento redundaria na inconstitucionalidade material dos artigos 113.º, n.º 6, e 178.º, n.º 4, do Código Penal, por violação do dis­posto nos artigos 25.º, n.º 1, e 26.º n.º 1, da Constituição da República Portu­guesa.”

2-         Descortinar o enigma sobre quem visa defender altruistamente os interesse das menores.
Imbuído pelos fundamentos acima recenseados, cumpri-nos o dever de, numa forma cabal, dessecar entre: I- o desacerto detetado na fundamentação de ambas partes, II- melhor salvaguarda dos interesses das menores e III- a respetiva omissão na reclamação de prosseguimento do procedimento criminal contra a arguida D, por parte do novo magistrado designado para o processo.
I
Da parte do Ministério Público consideramos desacertado a postura do primeiro magistrado que encarregou do processo na medida em que consentiu a validade das desistências de queixas por parte dos representantes legais pactuando ostensivamente com a impunidade, pese embora a posição de ministério público veio a ser afirmado pelo segundo magistrado o que em certa medida mexe com a segurança jurídica e a certeza jurídica, uma vez que, sempre que para o processo seja nomeado o novo magistrado corre-se o risco de interposição do recurso, contudo com isso não se advoga a passividade perante as atitudes incorretas dos antecessores.

Da parte do arguido, não nos parece sindicável o facto de ter depositado a total confiança na natureza semipúblico do crime, por achar que por ser assim já ilegítima a intervenção do ministério público, na verdade se isso fosse certeiro estaria a abrir uma enorme válvula escapatória aos agentes do crime, na justa medida em que se limitariam a rezar para que haja a desistência para saírem ilibados do processo. É notório que existem enésimos circunstancialismos que motivam a rápida desistência dos representantes legais que se prendem com subornos, cansaços ou falta de paciência para aturar as maratonas processuais e receios da má aplicação do direito que acarretará o pagamento das custas judiciais.

Para terminar, lembra Maia Gonçalves que no ratio legis da norma em questão está uma preocupação no sentido de reforçar a proteção do menor, atenta a sua especial vulnerabilidade e a falta de proteção familiar. Ora se a finalidade da norma é proteger menor da carência de proteção familiar, ou seja de quem teria o direito da queixa, não se compreenderá que se deixe ficar a ação penal dependente dessa queixa que se quis suprir. Daí a imperiosa necessidade da intervenção do Ministério Público na qualidade de defensor da legalidade e da justiça – valores que são nada mais-nada menos que a meta visada com a repartição da natureza dos crimes em três. No fundo faz mais sentido saltar um meio e atingir um fim do que garantir o cumprimento do meio obstaculizando a realização da justiça ou, melhor dizendo, do fim.
II
In casu, dúvidas não há que, o ministério público está em melhores condições de, na qualidade de um observador externo, avaliar descomprometidamente o impacto da violação e o constrangimento que causará na vida das menores, isto porque, ao contrário dos pais, não tem beneficiado de nenhum suborno, tem é um interesse reflexo em defender a legalidade e o cumprimento do castigo determinado pela conduta criminosa, evitando desse jeito uma situação que se encaminhava para a impunidade.   
Repare que ficou patente que a mãe da menor A, só quis retirar a queixa dadas especiais relações com agente da prática do crime, ao que tudo indica o agente terá com ela estabelecida uma relação duvidosa. Acresce a isso o facto de, durante, muito tempo o arguido foi pagador de todas as despesas mensais da mãe da menor A, sem contar que também foi co-arguida no mesmo processo não só pelo crime de lenocínio, mas também por ter facilitado o envolvimento do arguido e a sua filha, visto que consentiu que a filha pernoitasse em casa do mesmo. Perante este enrolado todo só há uma certeza: A mãe da vítima é uma dependente económica do arguido por isso está vendada para a dignidade da filha, interessa-lhe mais os benefícios pessoais, tem uma ideia viciada, a sua conduta é repugnante pelo que não se encontra em melhores condições para defender os interesses da filha.
III
O segundo magistrado, sem embargo do seu excelente trabalho que sustentou o recurso e que deu prosseguimento ao julgamento, omitiu o pedido de continuação do processo contra a arguida D (mãe da vítima A) que vinha sido indiciada como autora material, de forma consumada e continuada, de um crime de lenocínio de menores previsto e punido pelos atuais artigos 175/1 e 2, c). e art. 177/1, a). Imputamos esta responsabilidade ao magistrado, não ao tribunal, porque percebe-se que o princípio de dispositivo exige uma certa passividade dos tribunais, isto é ficam limitados às peças fornecidas pelas partes. Ora a parte que devia aqui impulsionar o processo nesse sentido é o ministério público, pois tem a responsabilidade de garantir que o sistema funcione no sentido de a justiça penal ter a intervenção (Cfr no art.219 º da CRP).

Recordamos que a arguida foi ilibada com fundamento na falta de prova, ora essas provas podiam ser conseguidas pelo magistrado bastando um mínimo de esforço: primeiro por via de consentimento da arguida para que a sua filha pernoitasse na casa do arguido, segundo por benefícios que auferia do arguido. Em suma esta mãe incumpriu os seus deveres fundamentais plasmados nos artigos 36/5 e 67/1, in fine da CRP.

Em nosso entender podia-se levantar ainda a questão sobre o trabalho infantil ao que a menor estava sujeita, pelas limpezas à casa do arguido, salientando que, inclusive, constitui uma violação constitucional flagrante segundo o artigo 69/3 da CRP. Contudo temos a consciência que sobre esta questão o processo não ia longe porque, rapidamente, podia ser encobertada com a ideia de solidariedade e da ajuda dos mais novos aos mais velhos, ainda mais que quem auferia dos benefícios não era a menor (ou se for era só reflexamente), mas sim a mãe.   

3-           Posicionamento Pró ou contra o tribunal constitucional e a respetiva conclusão.

Há que pôr acento tônico em três pontos que achamos ser a alma da vitória do tribunal constitucional que são:

a)      Põe cobro a estagnação do processo e consequentes adiamentos do julgamento originado pelas interposições dos recursos e esgotou a possibilidade de recurso no referido processo, pelo menos a nível interno.

b)      Evitou o arquivamento do processo e consequente extinção do processo-crime que daria azo a uma situação de impunidade imunda.

c)      Opção pela reafirmação da importância do princípio da dignidade da pessoa humana previsto no art. 1 da CRP, implicitamente decalcado da concordância que o mesmo deu sobre a constitucionalidade das normas dos artigos 113, nº 6 e 178/4 do código penal. Isto porque fixou a interpretação no sentido de: ….Iniciado o procedimento criminal pelo Ministério Público por crime de abuso sexual de crianças e de atos sexuais com adolescentes, independentemente de queixa das ofendidas ou seus representantes legais …… tal era imposto pelo interesse das vítimas, a posterior oposição destas ou dos seus representantes legais não é suficiente, por si só, para determinar a cessação do procedimento.

Em jeito de conclusão, parafrasear o Professor Jorge Miranda, os órgãos de fiscalização da constitucionalidade devem raciocinar não tanto em juízos lógico-formais quanto em juízos valorativos, procurando soluções constitucionalmente corretas, descendo ao fundo das coisas e não se contentando com as aparências. Nunca estará em causa apreciar a oportunidade política desta ou daquela lei ou a sua maior ou menor bondade para o interesse público. Estará ou poderá estar em causa a correspondência de fins, a harmonização de valores, a inserção nos critérios constitucionais.

Por tudo até aqui sufragado a conclusão não podia ter sido outra se não concordância com o Tribunal constitucional, que considero estar, desta e mais uma vez, ao mais alto nível, funcionando como o barómetro do sistema e assumindo uma posição exemplar e irrepreensível ao negar provimento a um recurso que mais não visava se não: criar dúvidas na consciência do julgador, protelar o desfecho do caso e a consequente condenação do arguido pelos crimes que cometeu. 



                    DONE BY: Ricardo Vicente Lima da Costa e Silva.

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