quinta-feira, 17 de outubro de 2013

DESCOMPLICAÇÃO DA DICOTOMIA NOS CRIMES DE PERIGO




Crime de Perigo Abstrato VS Crimes de Perigo Concreto





SUMÁRIO:
I. Introdução. II. Colocação do Problema. III. Crimes de Perigo Abstrato VS Crimes de Perigo Concreto. a)-Quanto a Exigência do Tipo. b)-Quanto a Materialização. c)- Quanto a Natureza. d)-Quanto a Repartição de Tarefas entre o Legislador e o Luiz. IV- A Terceira Via - Crime de Perigo Abstrato-Concreto. 
V. Exemplificação e Posição Adotada.                                




I. Introdução

O presente trabalho pretende ser, primeiramente, o tema para início do debate no exame oral de melhoria de Direito Penal IV, leccionado pelo Professor João Curado Neves e também pretende ser um contributo para a dissipação das dúvidas sobre a figura dos crimes de perigo, em concreto – a dicotomia que nela existe – refere-se a confluência incessante entre aquilo que se deve perceber por crime de perigo abstrato, dum lado, e por aquilo que se deve perceber como crime de perigo concreto, doutro lado.

Julgamos ser indispensável puxar algumas posições doutrinárias nas quais se encontram firmadas critérios objectivos que promovem uma dissociação que põe cobro a mitigação e que estabelecem, definitivamente, uma separação entre as duas modalidades de crimes de perigo. Ainda, tendo em conta uma perspetiva abrangente, incluímos neste trabalho um rescaldo sumaríssimo sobre aquilo que por muitos se posiciona como a terceira figura dentro dos crimes de perigo, está-se a falar de crime de perigo abstrato-concreto – que contem no seu núcleo duro a transformação duma situação meramente hipotético numa situação fortemente verificável, se quiser materializável.

Na verdade esta última classificação foi renegada na doutrina alemã, por alguns juristas, que não lhe reconheceram autonomia. Parafraseando o Professor José Faria Costa «os crimes de perigo exigem pressuposto duma especial política criminal ou, talvez melhor, reivindicam uma particular ponderação quanto às decisões político-criminais que os sustentam enquanto formas interventoras na modelação do real jurídico-social».

Os crimes de perigo suscitam obviamente um problema de legitimidade atinente a restrição de direitos fundamentais, na justa medida em que a sua concretização se relaciona com a justa distribuição de ius puniendi. No final pretendemos apontar alguns exemplos práticos de modos a ensaiar uma singela colocação das normas do código, que são de perfeita inserção, nas três modalidades de crimes de perigo supra citadas.


II. Colocação do Problema

Numa perspetiva minimalista podíamos começar por traçar e elencar as linhas distintivas entre as duas figuras, só que parece-nos pertinente começar com um exemplo dum crime contra genuinidade, onde vamos fazer uma retrospetiva do conteúdo do artigo na versão inicial do código de 1982 e na versão actual na qual tentaremos demonstrar a diferença de tratamento que existe entre ele e a legislação especial. Estamos a referir o artigo 273 – na versão de 1982, que se configura como artigo 282 °/ 1 do Código Penal (em diante CP) que encontra a semelhante previsão no artigo 24° do Dec-Lei 28/84, de 20 de Janeiro, ora destacamos desde já as frases de aproximação ou de distanciamento:

A versão de 1982 (artigo 273) inclui, além do perigo para a vida, o perigo de «grave lesão para a saúde e integridade física alheias», no nº 1, e prescrevia no nº3 uma pena bastante atenuada para o caso de o perigo para a saúde ou a integridade física a que se referem nos números anteriores serem de pequena gravidade – estas disposições foram revogadas na revisão de 1995, na qual se eliminou a distinção quantitativa entre o perigo de grave lesão do nº 1 e o perigo de pequena gravidade do nº 3.

Na versão revista/atual - do artigo 282 º CP, sob epígrafe Corrupção de substâncias alimentares ou medicinais colocamos a acento tônico na necessidade da «criação do perigo para a vida ou para a integridade física de outrem».

Por seu turno o artigo 24 °, nº 1, do DL nº 28/84 veio suavizar, (o que é incompreensível na opinião do Professor Augusto Silva Dias), ao exigir que os géneros alimentícios destinado ao consumo não sejam suscetíveis de criar perigo para a vida e integridade física alheias, ora isto revela uma danosidade social muito menor do que o previsto nos dois artigos supra indicados.

Com efeito, em ambos os artigos, os bens jurídicos protegidos pela incriminação são a vida e a integridade física de outrem, mas (e é isso que justifica a chamada à colação deste exemplo ao trabalho), as previsões são diversas e as respectivas punibilidades também.

A próxima questão a ser levantada é sem dúvida, em quê que o atual artigo 282 º difere do artigo 24, nº 1 do DL 28/84 ?

Muito sucintamente diremos que dum lado, o artigo 282 do CP tem como especialidade em relação ao crime do artigo 24 do DL 28/84, a exigência de idoneidade para criar um perigo para a vida ou para a saúde. No fundo é uma fase mais avançada do processo de lesão. Já doutro lado, o crime previsto no artigo 24, nº 1 do DL 28/84 só é punível quando não haja sequer perigo para a vida ou integridade física. O crime de corrupção das substâncias alimentares ou medicinais é um crime de perigo concreto (quanto ao grau de lesão dos bens jurídicos protegidos) e é um crime de resultado (quanto a forma de consumação do ataque ao objeto da ação) – é o que resulta do entendimento do Paulo Pinto de Albuquerque, que obteve o acolhimento por parte do Professor Augusto Silva Dias.  

Feita essa mini-comparação pretende-se ilustrar que mesmo no âmbito duma previsão de duas normas que têm como função tutelar o mesmo bem jurídico existe a possibilidade de ter orientações diversas, pois não será escusado a perplexidade que nos surpreenderá quando temos que lidar com a dicotomia existente nos crimes de perigo, no qual se podia pretender que o legislador nos facilitasse a tarefa e tratasse-o como uma única modalidade já que os bens protegidos são quase das mesmas espécies. Ora tal não foi feito pelo que cabe-nos traçar, infra, as distinções.


III. Crimes de Perigo Abstrato VS Crimes de Perigo Concreto


a)- Quanto a Exigência do Tipo

Na aceção do Professor Augusto Silva Dias sobre o – Crime de Perigo Concreto – o tipo exige a comprovação de uma situação concreta de perigo para um ou vários bens jurídicos, desligada mas objectivamente imputável à ação. Ao passo que – No Crime de Perigo Abstrato – o tipo limita-se a descrever uma conduta genericamente perigosa, de acordo com os dados estatísticos ou regras de experiência da vida quotidiana, ou seja, o que se presume aqui é tão só o caráter perigoso da própria ação e não a realização de um resultado de perigo.

b)- Quanto a Materialização

Na aceção de Marta Felino Rodrigues no – Crime de Perigo Concreto - exige-se a verificação de um resultado típico oriundo da criação de uma situação de perigo concreto para um objeto tipicamente protegido. A realização do respetivo tipo está, então, dependente de uma intervenção judicial, subordinada à prova da ocorrência. Enquanto no Crime de Perigo Abstrato a verificação daqueles elementos (resultado típico e intervenção judicial) não são exigidos.

c)- Quanto a Natureza   

O Crime de Perigo Concreto é um crime material, ao passo que o Crime de Perigo Abstrato é um crime formal.

d)- Quanto a Repartição de Tarefas entre o Legislador e o Luiz

Na consideração de Schröder – nos Crimes de Perigo Abstrato – os indícios de perigosidade são determinados exclusivamente pelo legislador, enquanto nos Crimes de Perigo Concreto, a decisão sobre a perigosidade da ação ou a ocorrência do resultado de perigo, respectivamente, não é tomado pelo legislador mas cabe somente ao juiz.

O Professor Augusto Silva Dias posicionou contra esta separação de poderes, porquanto considerou que a interpretação sobre a modalidade típica do perigo a ser determinado pelo juiz só será possível após a indicação fornecida pelo legislador no texto incriminador. Ainda porque o juiz tem sempre que verificar a existência do perigo, fá-lo-á de forma negativa (impossibilidade geral de lesão no caso concreto) quando se trata de perigo abstrato e de forma positiva (séria possibilidade de lesão) quando se trata de perigo concreto.

Constatamos que a opinião de Schröder não colhe face os argumentos do Silva Dias, por isso aderimos a posição deste último, pois a diferença entre o perigo abstrato e concreto não é determinado pela intervenção do juiz ou não, mas sim pelo tipo de juízo que ele tem de efetuar (positivo ou negativo/geral ou concreto).


IV. A Terceira Via - Crime de Perigo Abstrato-Concreto

Na Alemanha, Claus Roxin no seguimento de Horn, recusa dar ao Crime de Perigo Abstrato-Concreto o sentido de uma classificação autónoma dentro dos crimes de perigo e considera a sua interpretação, como «altamente controversa» compreendendo-o nuns casos como perigo concreto e noutros como perigo abstrato especial, contudo aceitou a correspondência das noções de perigo abstrato-concreto e de aptidão.  

Existe uma certa flutuação de conceitos na dogmática penal a respeito dessa classe de infracções, por isso, se bem julgamos, a doutrina anda entre uma visão bipartida dos crimes de perigo (conforme resulta implicitamente da doutrina de Roxin) e uma visão tripartida dos crimes de perigo (de acordo com a construção de Schröder).

Em Portugal não existe dúvidas, a tripartição dos crimes de perigo é maioritariamente acolhida, ainda que com preferências de cada autor em denominar a terceira classificação (os chamados crimes de perigo abstrato-concreto). Existem, inclusive, tendências de alguns autores em ampliar a classificação, são os casos do Professor Paulo Sousa Mendes, que falou em crimes de perigo abstrato potencial, do Professor José de Faria Costa, que falou em crimes de perigo (concreto) de proteção antecipada e finalmente do Professor Cavaleiro de Ferreira, que anunciou uma terceira espécie: os crimes de «perigo de perigo» ou «risco de perigo».

O crime de perigo abstrato-concreto é tratado, em Portugal, como uma classificação autónoma, aliás é a orientação dos Professores Figueiredo Dias e Rui Carlos Pereira, este último aponta como exemplos de crimes de perigo abstrato-concreto os artigos: 144 °, n º 2 (Ofensas corporais com dolo de perigo), 272 °, n º 1 (Deterioração de alimentos destinados a animais), e 273 °, n º 1 e 2 (Corrupção de substâncias alimentares ou para fins medicinais), ambos da versão originária do Código Penal de 1982.   

Nestes crimes deverá averiguar-se positivamente, se a conduta é genericamente perigosa, no actual regime consta uma exigência da adequação social inerente ao tipo, ou seja a ação deve ser adequada a produzir resultado.


V. Exemplificação e Posição Adotada

Doutrinariamente costuma ser apontado como exemplos dos três tipos de crimes de perigo, os artigos 291 ° CP, 292 ° CP e 139 ° CP, sendo o primeiro respeitante aos crimes de perigo concreto; o segundo atinente aos crimes de perigo abstrato e o último diz respeito aos crimes de perigo abstrato-concreto. Chegados aqui, torna pertinente delimitar, de concreto, o tipo de juízo que se faz em cada uma destas classificações, assim:

Nos crimes de perigo concreto – o juízo implicará a identificação de uma situação em que a lesão do bem jurídico surge como possível ou provável, destacável logicamente da própria ação e conexionada causalmente com ela.

O artigo 291 ° é um exemplo paradigmático do crime de perigo concreto, tem como epígrafe «Condução perigosa do veículo rodoviário», os bens jurídicos protegidos pela sua incriminação são a vida, a integridade física e o património de outrem. É um crime de perigo concreto – quanto ao grau de lesão dos bens jurídicos protegidos e, simultaneamente, é um crime de resultado – quanto a forma de consumação do ataque ao objeto da ação, pois a norma além de descrever a conduta vedada, ainda exigiu a existência da criação efectiva do perigo para a vida, integridade física ou bens patrimoniais alheios de valor elevado. No fundo a norma não só contenta com a presunção ou inferências lógicas da perigosidade, antes exige a verificação do resultado concreto, ou seja, tem que existir a consumação.

Nos Crimes de Perigo Abstrato – há lugar a um juízo negativo de perigo pelo qual se deverá averiguar se o comportamento é insuscetível de gerar qualquer risco de lesão do bem jurídico tutelado. Na verdade o que se presume aqui é o caráter perigoso da própria ação e não a realização de um resultado de perigo.

Encontra o seu tratamento cimeiro no artigo 292 ° CP, sob epígrafe «Condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influencia de estupefacientes ou substancias psicotrópicas», a sua incriminação tem em vista a proteção da vida, integridade física e património de outrem. É um crime de perigo abstrato – quanto ao grau de lesão dos bens jurídicos protegidos e é crime de mera atividade – quanto a forma de consumação do ataque ao objeto da ação. O seu tipo subjectivo admite qualquer modalidade de dolo e negligência, aliás a incriminação pune com a mesma moldura o crime cometido na forma dolosa e na forma negligente.

Finalmente nos Crimes de Perigo Abstrato-Concreto – deverá averiguar-se positivamente a perigosidade genérica da conduta.

Atualmente vem previsto, por excelência, no artigo 139 ° CP, cuja epígrafe é «Propaganda do suicídio» destina-se a proteger a vida humana, a preservação do bem estar coletivo e, máxime, a manutenção de salus pública. 

Comporta caraterística de crimes de perigo abstrato concreto – quanto ao bem jurídico e também um crime de mera atividade - quanto ao objeto da ação. Nele a tentativa não é punível. No corpo do artigo é exigida a adequação, no sentido da ação ser adequado, idóneo ou suficiente para provocar o suicídio.

Esta adequação deve ser entendida, segundo Professor João Curado Neves, não como consequência, mas como qualidade do facto, no mesmo sentido em que se fala em adequação no artigo 10º, ou de idoneidade no artigo 22º, nº 2, alínea b) do CP. 

                                    
                                 DONE BY: Ricardo Vicente Lima da Costa e Silva.

sábado, 7 de setembro de 2013

PRÓS E CONTRAS AS REFORMAS AO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL EM 2013



Prós e Contras as Reformas ao Código de Processo Penal de 2013





SUMÁRIO:
I. Introdução. II. Alterações Relevantes. III. Idéias à Favor e Contra a Reforma. a)- Opinião do Governo. b)- Opinião dos magistrados do ministério público. c)- Opinião dos Advogados. d)- Opinião dos Juízes.  IV. Posição Adotada.





I. Introdução

Nesta pequena reflexão pretende-se trazer a luz do dia uma discussão que promete correr rios de tintas, que tem que ver com as alterações introduzidas pela Lei nº 20/2013, de 21 de Fevereiro ao Código de Processo Penal (doravante CPP), aprovado pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, e que entraram em vigor no dia 23 de Março de 2013.

As razões que motivaram esta alteração pontual são pelo menos atendíveis uma vez que tinha em vista alcançar um ponto de equilíbrio, máxime uma adequação entre, por um lado, a necessidade de eficácia no combate ao crime e defesa da sociedade e, por outro lado, a garantia de defesa do arguido.

Após a introdução viraremos as atenções para conseguir as respostas sobre a pertinência da reforma de 2013, a sua oportunidade e a sua eficácia. Aparenta estarmos longe de alcançar um consenso no seio dos intervenientes processuais, em especial, e de toda a comunidade que almeja uma justiça penal funcional.

Conta-se já, em 2013, com a vigésima terceira alteração ao código de processo penal, desde 1987, ora levantou-se preocupações no sentido de olhar para os anos volvidos (recordo 26 anos) e os números das alterações (23 vezes) para tentar depreender se já estamos à beira de uma «diarreia legislativa» ou se, no entanto, estamos com certa estabilidade legislativa. Ora os números falam por si e repare que é quase 1.1 (alteração), em média, por ano pese embora algumas não são propriamente alterações, mas sim correções.

Existe realmente uma inquietação, ou melhor, existe variadíssimas interpretações e diferentes formas de olhar para esta reforma que, do ponto de vista do governo, é deveras importante. Mas já do ponto de vista de alguns destinatários ou, até mesmo, os cultivadores da ciências criminais não passa de uma manobra habitual dos políticos/governos em deixarem as suas marcas através dos recursos às técnicas das produções legislativas. Dito isto assim, parece que as reformas têm só de errado – o que não é verdade, apesar de se registar mais vozes a criticarem.

Atenção que, por vezes, nem são críticas substanciais na medida em que as pessoas facilmente sentem-se acomodadas, daí as suas renitências às mudanças. Na realidade existem vozes que aplaudiram a reforma e que as consideram benéficas e certeiras, tanto na perspetiva de valores constitucionais como no plano técnico-jurídico, se não vejamos:

-Algumas normas em vigor foram objecto de juízos de inconstitucionalidade (ex: o direito de acesso aos autos pelo arguido para exercício da sua defesa em caso de prisão preventiva);

-As fontes de Direito Internacional a que o Estado português está vinculado impõem certas alterações (ex: das decisões quadro que obriga o Estado a avisar as vítimas do crime da libertação dos reclusos);

-Determinados regimes suscitam problemas práticos de difícil resolução (nomeadamente os conflitos de competências entre os tribunais e os incidentes de recusa do juiz);

-Outras normas ainda são obscuras ou de difícil interpretação (ex: entrega imediato das escutas ao juiz sem esclarecimento do alcance concreto de tais exigências);

-E, por fim, é desejável aumentar a celeridade processual (fundamentalmente evitar o costume das transcrições generalizadas das audiências).

Finalmente, neste artigo, daremos a conhecer medidas que constaram nas novas redações e que realmente são materializáveis, elencaremos algumas posições em função dos sectores em que se inserem os intervenientes e consequentemente ofereceremos o nosso assentimento acerca das recentes alterações ao código de processo penal.


II. Alterações Relevantes

A presente alteração envolve um número significativo de 50 artigos à saber: 13.º, 14.º, 16.º, 40.º, 61.º, 64.º, 99.º, 101.º, 103.º, 113.º, 141.º, 144.º, 145.º, 154.º, 155.º, 156.º, 172.º, 194.º, 196.º, 214.º, 260.º, 269.º, 281.º, 287.º, 315.º, 337.º, 340.º, 342.º, 356.º, 357.º, 364.º, 379.º, 381.º, 382.º, 383.º, 384.º, 385.º, 387.º, 389.º, 389.º -A, 390.º, 391.º -B, 397.º, 400.º, 404.º, 411.º, 413.º, 414.º, 417.º e 426.º.

Com efeito atinge quase toda a estrutura do código do processo penal (se preferir um vasto leque de matérias), que inclui as competências dos sujeitos, direitos e deveres, substancialidade dos autos das notícias, a forma dos atos, meios de prova, meios de obtenção de prova, as medidas de coação, as medidas cautelares de polícia, o inquérito, a instrução, o julgamento, os processos especiais e os recursos.

Dentro deste conjunto vasto de matérias alteradas há muitos aspectos que podiam ser retratados, mas atendendo ao objectivo deste artigo que só visa servir de tema para início do debate numa prova oral de melhoria, (e ainda mais que o assunto é tão recente e sem monografias suficientes), colocaremos o nosso foco, apenas, naquelas que suscitam maior curiosidade e interesse conforme elencaremos infra sem qualquer ordem de importância:

Artigo 141 °, n° 3 – descriminalizou-se as falsas declarações prestadas pelo arguido relativamente aos seus antecedentes criminais, ou seja, ele deixa de ter de responder sobre os seus antecedentes criminais em sede do interrogatório, mas se o fizer e com mentiras sujeita-se a condenação pela prática de crime de falsas declarações. 
Ainda no n° 4 do artigo 141 ° foi acrescentada alínea b) onde o arguido é advertido de que ao não exercer o direito ao silêncio, as declarações por ele prestado, nomeadamente quando prestadas em sede de primeiro interrogatório estando detido, passam a poder ser utilizadas ao longo de todo o processo, mesmo que seja julgado na ausência ou não preste declarações em audiência de julgamento, pese embora, estando sujeitas à livre apreciação da prova.

Artigo 194 °, n° 2- O Juiz de Instrução Criminal pode, no âmbito do inquérito, aplicar medidas de coação mais gravosas do que as promovidas pelo Ministério Público, desde que o fundamento para essa mesma aplicação seja a fuga ou perigo de fuga, ou perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas. No regime anterior, estava vedada ao Juiz de Instrução Criminal a possibilidade de aplicar medida mais gravosa do que a requerida pelo Ministério Público, sob pena de nulidade.

No que tange ao artigo 281 °, sob epígrafe suspensão provisória do processo, foram introduzidas duas especificidades, (aplicáveis nos crimes puníveis com pena de prisão inferior a 5 anos ou com a pena diferente da de prisão), à saber:

 1- Quando o crime praticado tiver como sanção acessória a proibição de condução de veículos com motor, a mesma terá de ser aplicada como condição imposta ao arguido para beneficiar da suspensão;

2- Relativamente aos crimes de furto, de valor diminuto e com recuperação imediata dos bens móveis subtraídos, e quando a conduta ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público, a suspensão não depende da concordância do Assistente.

No concernente ao processo sumário, artigo 381 ° e ss, houve grandes alterações. No fundo o processo sumário passou a ser aplicável a todas as detenções em flagrante delito, excepto relativamente à criminalidade altamente organizada, aos crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, aos crimes contra a segurança do Estado, e aos crimes previstos na Lei Penal Relativa as Violações do Direito Internacional Humanitário – artigo 381.º do C.P.P.

As audiências dos processos sumários terão lugar, no máximo, no prazo de 20 dias após a detenção (em vez do anterior limite de 15 dias), sempre que o Arguido tiver requerido prazo para preparação da defesa ou o Ministério Público julgar necessária a prática de diligências probatórias com vista à descoberta da verdade – artigos 382.º, n.º 4 e 387.º, n.º 2, al. c) do C.P.P.

Atualmente, a audiência pode, ainda, ser adiada, pelo prazo máximo de 20 dias, para obter a comparência de testemunhas devidamente notificadas ou para a junção de exames, relatórios periciais ou documentos, cujo depoimento ou junção o Juiz considere imprescindíveis para a boa decisão da causa – artigos 387.º, n.º 7 do C.P.P. Introdução de um limite temporal para a produção de prova, em função do tipo de crimes em causa:

i) Em caso de crime punível com pena de prisão cujo limite máximo não seja superior a 5 anos, ou em caso de concurso de infracções cujo limite máximo não seja superior a 5 anos de prisão: toda a prova deve ser produzida no prazo máximo de 60 dias a contar da data da detenção. No entanto, a prova pode, excepcionalmente, e por razões devidamente fundamentadas, designadamente por falta de algum exame ou relatório pericial, ser produzida no prazo máximo de 90 dias a contar da data da detenção – artigo 387.º, n.º 9 do C.P.P.

ii) Em caso de crime punível com pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 5 anos, ou em caso de concurso de infracções cujo limite máximo seja superior a 5 anos de prisão, os prazos a que alude o número anterior elevam-se para 90 e 120 dias, respectivamente – artigo 387.º, n.º 10 do C.P.P.

Quanto ao processo sumaríssimo, artigos 392 ° e  ss., muito pouco se oferece a dizer - o despacho proferido pelo Juiz quanto à aplicação da sanção, no seguimento do requerimento apresentado pelo Ministério Público a que o Arguido não se opôs, vale como sentença condenatória e não admite recurso ordinário – artigo 397.º, n.º 2 do C.P.P.

Já nos regimes dos recursos, integram agora o elenco das decisões que não admitem recurso, nos termos do artigo 400.º do C.P.P.:

a) Os acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, excepto em caso de decisão condenatória de 1ª instância em pena superior a 5 anos; e

b) Os acórdãos proferidos pelas relações, em recurso, que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos.

Introdução de um prazo único para a interposição de recurso de 30 dias, independentemente de ser ou não impugnada a matéria de facto – artigos 404.º, 411.º e 413.º do C.P.P.

No regime anterior, o prazo para a interposição de recurso era de 20 dias, o qual era elevado para 30 dias quando o recurso tivesse por objecto a reapreciação da prova gravada.

Uma nota final tem que  ver com a imediaticidade destas alterações, uma vez que são aplicáveis aos processos pendentes à sua data de entrada em vigor. Outro sim, também, tem a ver com o seu respeito pelo princípio de aplicação de lei no tempo, máxime - aplicação da lei penal mais favorável, isto porque abriu uma exceção a imediaticidade quando a lei resultante das alterações de 23 de Março de 2013:

1- comportarem um agravamento da situação do arguido, como por exemplo a limitação das garantias de defesa decorrentes do regime anterior; 
2- Quando o prazo já estiver em curso no momento da entrada em vigor da lei nova.


III. Idéias à Favor e Contra a Reforma

 a)- Opinião do Governo como não podia deixar de ser, registamos o assentimento do governo em relação a necessidade e importância das alterações. Segundo Paula Teixeira da Cunha, Ministra de Justiça, as novas regras têm como objectivo possibilitar uma justiça mais célere onde enfatizou o facto de, agora no processo sumário, quem seja detido em flagrante delito pode ser julgado num prazo máximo de 90 dias. 

Concluiu dizendo que “aplicar a justiça de forma plena implica adequar as leis penais ao momento atual, quer contemplando novas realidades, quer corrigindo soluções que se mostraram geradoras de ineficácia”.


b)- Opinião dos Magistrados do Ministério Público – Na opinião de Rui Cardoso, Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, retira-se um reconhecimento da falta de unanimidade na aceitação das alterações introduzidas pela Lei nº 20/2013, de 21 de Fevereiro ao CPP, quando afirmou, passamos a citar:

«Se algumas são discutíveis ou pouco relevantes – como por exemplo, considerou o facto de um juiz de instrução poder aplicar uma coação diferente da requerida pelo Ministério Público (em caso de perigo de fuga) “não respeita o princípio de que o juiz de instrução deve ser apenas um juiz de liberdade e garantia. Outras são verdadeiramente importantes e permitirão que a "verdade" apurada pelos tribunais se aproxime mais da "verdade" material e que a Justiça deixe de se contentar com meras aparências de "verdade"; outras ainda, como o alargamento do processo sumário, permitirão ganhos de celeridade, sem prejuízo para a qualidade.»

Deixou um apelo que aponta para a necessidade de polícias e Ministério Público se adaptarem às alterações e se articulem de forma mais eficaz. Estendeu o seu apelo aos Juízes que, habitualmente são avessos a mudanças, no sentido de as aceitar e aplicá-las dentro dos princípios gerais. Aos Conselhos Superiores, caberá adequar os quadros de magistrados. 

Concluiu que ninguém deve, assumida ou dissimuladamente, boicotar a lei, caso contrário estas alterações tornar-se-ão meras boas intenções (o itálico é nosso).


 c)- Opinião dos Advogados – para começar destacamos uma preocupação com a instabilidade das normas motivadas pelas constantes alterações, já tantas vezes quantas aos anos da existência do código de processo penal, há quem diga que não justificava estas alterações de 2013, trata-se do Advogado Rui Patrício, sócio da Morais Leitão, considerou ainda que em Portugal excesso de produção legislativa que contribui grandemente para a instabilidade, além de acarretar problemas de aplicação nos tribunais. No seguimento desta ideia veio Paulo Farinha Alves (sócio da PLMJ) acrescentando que os principais diplomas legislativos devem manter uma certa estabilidade e devem ser cautelosas as mudanças introduzidas.

Paulo de Sá e Cunha, da Cuatrecasas, frisando que “os códigos são instrumentos legislativos dotados de uma lógica e coerência sistemáticas que são frequentemente atingidas por este tipo de alterações parcelares. Ainda disse não acreditar “que as novas alterações agora introduzidas ao Código de Processo Penal tenham sido ditadas por razões imperiosas”.

Para Francisco Colaço, da Albuquerque e Associados, “o problema está na elaboração das leis que não são pensadas e preparadas para que tenham aplicabilidade nos Tribunais”. E a mais recente alteração ao Código do Processo Penal peca, segundo o advogado, pelo mesmo defeito: “temo que estas medidas sirvam apenas para emperrar ainda mais os processos em Tribunal” 

Para Rui Patrício as alterações explicam-se mais pela vontade dos governos deixarem “uma marca nas leis, através da sua revisão” ou pela real “crença (infundada) de que é a mexer nas leis que se enfrentam e resolvem os problemas”. Também Paulo de Sá e Cunha diz que “os governantes continuam apostados em deixar a sua pegada nas leis penais”.

Muito em linha com o que pensa Paulo Farinha Alves, para quem “estas alterações são impostas por uma mentalidade redutora que obedece ao princípio de que se despejarmos leis para cima dos problemas eles desaparecem”

Ainda continua as criticas dos advogados:

- Em relação as medidas de coação ditadas pelos juízes -Rui Patrício considera particularmente negativas as alterações relativas às medidas de coacção e aos poderes do juiz a seu respeito e, também, as alterações relativas à possibilidade de utilização, no julgamento, das declarações prestadas pelo arguido nas fases anteriores. Do mesmo jeito também considera negativa o aumento do poder do juiz nomeadamente aplicação de medida diversa da proposta pelo ministério público.

-No que toca a declaração do arguido consideram que a alteração levanta um conjunto de problemas complexos e os penalistas consideram que era desnecessário mexer num regime que se encontra suficientemente sedimentado na doutrina e na jurisprudência.

-Em rela a leitura e valoração probatória - Paulo de Sá e Cunha «não sendo, ao contrário de outros respeitáveis colegas, um detrator absoluto desta inovação, sou crítico quanto aos termos em que a nova lei a veio consagrar. Parecia-me essencial ter-se restringido essa possibilidade de leitura e valoração das declarações de arguido aos depoimentos prestados perante juiz e sempre exigindo a gravação, no mínimo em suporte áudio, do teor integral dessas declarações».
- Quanto ao direito ao silêncio por parte do arguido - Francisco Colaço diz que esta alteração além de contrariar o princípio da imediação da prova, encontra-se ferida de inconstitucionalidade”.
-No âmbito do processo sumário - Paulo de Sá e Cunha diz que esta alteração, visando a celeridade da tramitação processual dos casos de flagrante delito, “é manifestamente iníqua e susceptível de atingir de forma inadmissível as garantias de defesa”
-Quando ao recurso em terceiro grau – foi introduzida mais duas restrições que vêm prescindir da dupla conforme.
Os aspectos positivos nos olhares dos advogados têm a ver com: a eliminação da pergunta ao arguido sobre os seus antecedentes criminais; leitura das declarações para avivar a memória; o uso do registo áudio visual e a possibilidade de alargar prazo para recurso.

d)- Opinião dos Juízes – consideram, no geral, que as medidas são positivas porque concretizam pontos de bloqueio da justiça portuguesa. Ainda resulta, da associação sindical dos juízes portugueses – conhecida pela sigla (ASJP), uma crítica que nem tem a ver com o processo sumário, mas com a possibilidade de julgamento de crimes que, pela sua gravidade, deviam ser julgados com algum distanciamento, até para acautelar os direitos das pessoas. José Mouraz Lopes, Presidente da ASJP, considerou positivas as possibilidade da leitura e valoração, em julgamento, as declarações do arguido prestado perante entidade judiciária, na fase do inquérito ou na de instrução.


IV. Posição Adotada

Depois de fazer toda essa arrumação das opiniões cumpri-nos apresentar e elencar a nossa posição, partindo do panorama geral e dizer: como tudo ou todas, estas reformas também tem os seus senãos, mas temos pra nós que é mais uma questão de relutâncias face as modificações que rapidamente vão ser adaptadas e conciliadas, contudo não deixemos de apontar uma crítica em relação as sucessivas alterações, ainda que cirúrgicas, mas não deixam de ser sucessivas (repare em 2007, 2008, 2009, 2010 e 2013) que realmente quebram a coerência sistemática do código, levantam problemas de interpretação e inutilizem as jurisprudências criando, assim, grandes margens de erros.

Afora isso consideramos individualmente o seguinte:  

-Artigo 141 º, nº 3 – A alteração é positiva no sentido de eliminar a obrigação de responder com verdade sobre os antecedentes criminais, pois evita o uso das confissões como único meio da prova ou seja evita o uso excessiva das inferências lógicas na determinação da culpa e do caráter perigoso do arguido, visto que é mais credível atestar o caráter criminoso de um indivíduo com recurso às requisições dos certificados do registo criminal, ao invés das meras declarações. É se se pretender uma medida que prima pela eficácia nas investigações.

Já o nº 4, b) do mesmo artigo comporta quanto a nós duas facetas: uma positiva - no sentido de advertir o arguido sobre a necessidade de ser coerente com o que vai dizer (já que nem amnesia se afigura tolerável, muito menos mentiras). Pois à partida saberá das consequências das suas declarações o que revela transparência na justiça penal.

Em relação a faceta negativa repescamos a posição do Advogado João Matos Viana que alertou para dificuldade que esta alínea b) pode criar no sentido de privar à investigação criminal de um instrumento importante para o esclarecimento da verdade material, nos casos em que o arguido decide antecipar o silêncio para uma fase anterior ao julgamento.   

-Artigo 194 °, n° 2- Parece-nos razoável conceder ao Juiz a possibilidade de aplicar medida de coação diversa da requerida pelo ministério público, (apesar do Sr. Professor Paulo Sousa Mendes considerar, se bem julgamos, desajustado essa medida e colidente com o princípio do Juiz garante da liberdade), pois cremos que serve de uma espécie de correlação das forças e da eliminação do monopólio do MP na escolha das medidas de segurança. É uma medida que garante, segundo julgamos, a certeza, proporcionalidade e adequação na escolha de medidas de coação.

-Artigo 381 º - o julgamento em processo sumário em 3 meses que parecia ser impossível e que foi considerado, por muitos, de uma velocidade supersônica, tornou-se realidade a 15 de Julho de 2013, no Tribunal de Fundão – Castelo Branco, num processo que teve Manuel Ramalho - de 73 anos, como agente do crime (arguido) e como a vítima, sua esposa, Maria Teresa - de 76 anos morta a paulada em 12 de Abril de 2013. Trata-se do primeiro homicídio julgado em processo sumário e a luz das alterações de 2013, decorreu sem problemas de maiores como muito tinha sido perspetivado.

Segundo Rui Cardoso «Tal como seria em processo comum, o tribunal teve o tempo adequado para, sem pressões, produzir toda a prova relevante para Ministério Público e arguido (nomeadamente inquirição de testemunhas, algumas por videoconferência para França, e exames periciais, incluindo um psiquiátrico sobre a imputabilidade do arguido) e, com a mesma objetividade e respeito pela lei, proferir a sua decisão, de que o arguido agora poderá recorrer.»

Em vez de 1 ano (como era antes) o julgamento foi concluído em 90 dias após o crime, com maior e mais eficácia dissuasor de outros crimes e de reconstituição do sentimento de segurança da comunidade. Ora isso é prova do, aparentemente, impossível e é um reforço da credibilidade da justiça criminal em Portugal.




                                DONE BY: Ricardo Vicente Lima da Costa e Silva.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

ANÁLISE AO ACÓRDÃO DO STA DE 30-01-2013, PROCESSO Nº 0993/12.



As Exigências de Certificações das Normas ISO







           SUMÁRIO:
I. Introdução. II. Enquadramento do Tema. a)- Tipos de Procedimentos Compatíveis com as Normas ISO. b)- Noção, Vantagens ou Benefícios das Normas Internacionais ISO. III. Fundamentos Doutrinárias e Jurisprudenciais. IV. Posição Adotada.




ABREVIATURAS


ISO-----------------------------International Organization for Standardization.

CA-----------------------------------------------Conselho de Administração.

CPTA-------------------Código de Procedimento nos Tribunais Administrativo.

TAC----------------------------------------Tribunal Administrativo de Circulo.

TCAS----------------------------------Tribunal Central Administrativo do Sul.

TCAN--------------------------------Tribunal Central Administrativo do Norte.

STA-----------------------------------------Supremo Tribunal Administrativo.

CCP-------------------------------------------Código de Contratos Públicos.

ANACOM-----------------------------Autoridade Nacional das Comunicações.





I. INTRODUÇÃO


Nesta excursão incidiremos sobre uma matéria que suscita muitas curiosidades na doutrina, ora por parecer de extrema complicação (ab initio), ora por ser relativamente recente – refere-se as exigências de certificações das normas ISO como documentos de habilitação (ou não) de um concorrente. Um certo concorrente exigiu o cumprimento das exigências do ponto 8 do Programa que continha as tais exigências de certificações, no âmbito de um concurso público, foi objecto, recentemente, de uma decisão do Supremo Tribunal Administrativo numa ação de contencioso pré-contratual, donde brotou o acórdão de 30 de Janeiro de 2013, disputado entre A….., S.A- inicialmente Autor e ICP-ANACOM e B…...,S.A. (inicialmente Réus).

O acórdão em questão, lança uma perspetiva de encarrar as exigências externas (comunitárias) e as suas compatibilizações com os regimes jurídicos internos. Ora estamos em face dum problema que surgiu na esfera da contratação pública, mormente a modalidade do procedimento do concurso público, onde os princípios gerais que gerem a administração pública continuam a merecer destaque, são eles: o princípio da estabilidade das regras concursais, o princípio da igualdade, o princípio da proporcionalidade e o princípio da concorrência.

Para não afetar de modo insustentável o princípio da concorrência, o artigo 165/1 e 3 do Código dos Contratos Públicos, doravante CCP, plasmou a obrigação duma relação adequada entre os níveis mínimos de capacidade técnica/financeiras exigidas e as particularidades, complexidade de execução e dimensão econômica do contrato. Após o enquadramento do tema, contamos fazer recenseamento de algumas opiniões firmadas na doutrina, apreciaremos os critérios seguidos na jurisprudência e finalmente ofereceremos uma breve resenha sobre o porquê das normas de certificações ISO, com que tipo de procedimento contratual, elas se identificam mais e, consequentemente, manifestaremos a nossa concordância ou não com a solução propugnada no acórdão objeto do trabalho.

  
II. ENQUADRAMENTO DO TEMA

Importa assinalar, antes de mais, que a contratação pública é a parte do procedimento administrativo contratual que cuida da arquitetura dos contratos públicos, que vai desde a decisão de contratar, determinação do procedimento pré-contratual, as respectivas fazes de formação do contrato e que entroncam na celebração do contrato.

Não é menos importante deixar uma linha separatista entre a realidade da contratação pública e a realidade do contrato administrativo, pois o primeiro guia-nos para o âmbito do procedimento administrativo contratual, enquanto o segundo preocupa com o âmbito dos contratos em si, ou melhor dizendo, dá uma elevada ênfase ao acordo de vontade, no fundo, é um contrato celebrado entre contraentes públicos e co-contratantes ou somente entre contraentes públicos.

Na mesma esteira, há quem tenha ido mais longe, tratasse do Pedro Miguel Matias Pereira ao afirmar que, não existe qualquer relação de necessidade ou de continuidade entre os contratos administrativos e os contratos públicos, tanto assim que podemos ter contratos administrativos que não são contratos públicos e contratos públicos que não são contratos administrativos.

Se as dúvidas ainda persistirem, a dissipação das mesmas são trazidas expressamente no código dos contratos públicos, que reserva a parte II (que vai dos artigos 16 à 277-com as flexibilizações previstas no artigo 1º/1 e 2) à contratação pública e a parte III (dos artigos 278 e ss) à contratos administrativos.

Posto isto, torna imperativo sumariar o acórdão no sentido de clarificar a origem do problema que nasceu a quando da pretensão da autora (A……S.A, empresa não adjudicado no concurso público) em ver o procedimento reconcursado e transbordando, aquilo que inicial era, concurso público em concurso limitado por prévia qualificação, pois só dessa forma poderiam ser introduzidas as exigências de normas de certificação ISO (que significa: International Organization for Standardization) – o que potenciava-lhe ser o candidato adjudicado, na medida em que, aparentemente, era detentor das tais certificações e uma vez que o candidato, ora adjudicatário não se predispusesse a apresenta-las, julgando serem desnecessárias em face do artigo 81 °/ 6 do CCP, apesar de constarem da parte final do nº 8 do Programa do concurso, cuja o teor é: documentos de habilitação.

Ao que tudo indica o processo começou com uma impugnação graciosa, máxime reclamação, junto da Autoridade Nacional das Comunicações no sentido de declarar caduca a adjudicação da empresa B………S.A ao concurso público para implementação e gestão de sistemas de informação centralizado. Não tendo sido reconhecido razão ao reclamante por aquela entidade, decidiu - o reclamante - partir para a impugnação contenciosa intentando, assim, ação de contencioso pré-contratual no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, demandando conjuntamente a ICP-ANACOM (na qualidade de entidade adjudicante) e a empresa adjudicada B……S.A (na qualidade de adjudicatário). Formulou alguns pedidos dentre os quais destacamos: o de anulação da deliberação do conselho de administração da ICP-ANACOM, subsidiariamente a este, ainda pediu a condenação da entidade demandada a praticar ato administrativo que se traduz na nova decisão de contratar por procedimento diverso, desta feita por procedimento de concurso limitado por prévia qualificação onde, do programa do concurso, passará a constar a obrigatoriedade da verificação das exigências de certificações das seguintes normas ISO:

ISO / IEC 2000-1:2005 – Que versa sobre as Tecnologias da Informação e Gerenciamento de Serviços. Define os requisitos para um provedor de serviços de modos a oferecer serviços gerenciados. Ainda ajuda aos tais provedores de serviços a compreender como melhorar a qualidade do serviço prestado aos seus clientes, tanto internos como externos.

ISO / IEC 27001: 2005 – É um conjunto formal de especificações em relação ao qual as organizações podem pedir a certificação independente do seu sistema de gestão da segurança de informação, conhecido pela sigla: (SGSI)

ISO 9001:2008 – Conhecida por sigla SGQ (Sistema de Gestão da Qualidade) – Estabelecem os requisitos para um sistema de gestão da qualidade dentro duma organização. Incitam uma demonstração, por parte das empresas, em fornecer os produtos de forma coerente. Os seus requisitos são genéricos e pretende-se que sejam aplicáveis a todas as organizações, independentemente do tipo, tamanho e produto que elas fornecem. 

ISO 14001: 2008 – Diz respeito ao Sistemas de Gestão Ambiental – contém requisitos com orientação significativos sobre os aspectos ambientais e o seu respetivo uso. É aplicável a qualquer organização que deseje estabelecer, implementar, manter e melhorar um sistema de gestão ambiental. Na realidade atestam a existência de conformidade das políticas ambientais das organizações.

Perante os olhares do Tribunal Administrativo de Circulo de Lisboa, na sentença fls. 213-247, não só foi julgado improcedente o pedido impugnatório dirigido contra a deliberação do conselho de administração do ICP-ANACOM de 20 de Outubro de 2011, como também foram desconhecidos os pedidos condenatórios por estarem na dependência do pedido impugnatório.

A autora (A…..S.A) não se conformou pelo que interpôs o recurso de apelação para o Tribunal Central Administrativo Sul, que concedeu parcial provimento ao recurso, no seu acórdão fls 446-476, no qual revogou a decisão proferida pelo tribunal a quo e, concomitantemente, anulou a deliberação do CA da Anacom de 20-10-2011. No fundo concordou com a caducidade da adjudicação à empresa B…….S.A, mas ao mesmo tempo diz alto aí: não é pelo facto de caducar o direito da empresa B é que faz da empresa A, diretamente, o adjudicatário. Com efeito julgou prejudicado o conhecimento do primeiro pedido subsidiário e julgou improcedente o segundo e terceiro pedido subsidiário.

A autora (daqui em diante recorrente) continua incansável, manifestou o seu inconformismo através da interposição do recurso de Revista junto ao Supremo Tribunal Administrativo, a luz do artigo 150 do CPTA, sobre a parte do acórdão do TCAS que lhe foi desfavorável. Ou seja, só depois de passarmos por estes 3 processos (reclamação, ação judicial e recurso da decisão) é que, finalmente, chegamos ao acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 30-01-2013 – onde se insere o tema que deu azo ao presente trabalho.

A Recorrente apresentou as suas alegações em sede de recurso e, como não podia deixar de ser, o recorrido, por seu turno, também contra-alegou e o STA proferiu o acórdão – assunto que contamos retomar infra (no ponto III), justamente porque consideramos ser imprescindível dar, de imediato, a conhecer o real conteúdo da norma em questão, o seu encaixe nas tipologias procedimentais e fundamentalmente as suas vantagens.    

a) - Tipos de Procedimentos Compatíveis com as Normas ISO

Na verdade parece óbvio não fazer sentido algum, integrar no ordenamento jurídico português exigências externas sem adequá-las ao regime jurídico português. Ora isto não significa que advogamos a subestimação das normas de condutas que primam pela melhor qualidade dos serviços. Apenas queremos alertar para a necessidade de direcionamento das tendências globais aos tipos certos de procedimentos em que haja, verdadeiramente, o cabimento. Até porque, segundo as orientações da Professora Maria João Estorninho, in curso dos direitos dos contratos públicos – por uma contratação pública sustentável, pág. 66, o princípio tradicional segundo o qual o contrato público obedece ao direito interno do Estado a que pertence a entidade pública que o celebra já não é estanque em tempos hodiernos, uma vez que os próprios contratos geram necessariamente fenômenos de internacionalização, ou seja é a própria globalização jurídica que está em causa.
  
No entanto, é sabido que a fixação de requisitos positivos de participação não se coaduna com a modalidade do Concurso Público, p.ex. (ou pelo menos não são de admitir como elementos de habilitação, porquanto não existe no concurso público uma fase de qualificação). 

Nesse mesmo sentido veja-se a opinião conjunta dos advogados Marco Real Martins e Miguel Assis Raimundo, constante num artigo com o seguinte tema: Documentos de habilitação e documentos de qualificação nos procedimentos de formação de contratos públicos, publicado em www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/MartinsRaimundo.pdf, onde alertaram sobre a maior controvérsia na dogmática da contratação pública atual, que se prende com a distinção entre documento de habilitação (artigo 81 do CCP) e documentos destinados a qualificação (previsto no artigo 168 do CCP). Nesse artigo, os autores, elucidaram que o legislador na tentativa de estabelecer uma distinção nítida entre concurso limitado por prévia qualificação e o concurso público optou por reservar a fase de qualificação, por excelência, ao concurso limitado por prévia qualificação, constituindo para os outros tipos de procedimento uma opção - mutatis mutandi (o itálico é nosso).

 Por isso é que a lei concede uma discricionariedade à entidade adjudicante, dando-lhe uma considerável possibilidade de optar ou pela realização do Concurso Público (abdicando de certas exigências subjectivas e apreciações de qualificações das empreses concorrentes) ou pelo Concurso Limitado – onde é unanimemente consentido a introdução das exigências de qualidades positivas, nomeadamente os documentos de certificação das normas ISO.

Para adoção de procedimento do concurso limitado por prévia qualificação, a lei exige uma fundamentação a fim de justificar a preferência pelo tipo do procedimento (na qual é sempre exigida razões ponderosas com vista a realização do interesse público), aliás é uma decorrência do dever de fundamentação previsto no artigo 38 do CCP. Ainda parece ser exigível o preenchimento de alguns princípios balizadores da contra pública em Portugal. Aliás é o que resulta da doutrina atual e atenta do Professor Miguel Assis Raimundo, na qual teve cuidado de explicar detalhadamente, passamos a citar, que a escolha dos procedimentos de caráter restritivos do universo concorrencial está, teoricamente sujeitas a um controlo de proporcionalidade na seleção dos agentes econômicos dos quais se admitirá as propostas. Ou seja a proporcionalidade do que aqui se fala, nada tem a ver com a escolha do procedimento em si (em que só é exigida o cumprimento do preceituado no artigo 38 CCP e pouco mais – o itálico é nosso), mas sim com os requisitos de capacidade técnica e financeira à estabelecer. 

Ainda convém notar que não obstante a existência de tal possibilidade de cumprimentos de mínimos de qualidade, é ilegítimo que as tais exigências abranjam toda atividade do concorrente. Isto é, apenas pode abranger uma parte da sua atividade que interessa para a materialização do contrato.

Enceramos a compatibilização duma forma negativa, ou seja a regra de exclusão de partes entra aqui para significar que o concurso público - acima referenciado e o ajuste direto – não referenciado infelizmente supra, não são compatíveis com as tais exigências (pelo menos nas suas fases de habilitação). Ora, o resto dos procedimentos não referenciados supra (o concurso limitado por prévia qualificação, o procedimento de negociação e diálogo concorrencial), são compagináveis - até certo ponto - com as exigências de comprovação de qualidades ou capacidades técnicas aos concorrentes. Isto porque neles existe, em separado, uma fase intermédia de qualificação de candidatos (Cfr. in, Estorninho, Maria João, Curso de direito dos contratos públicos, Lisboa, Almedina, 2012, pág. 374).

b)- Noção, Vantagens ou Benefícios das Normas Internacionais ISO

É quase impossível autonomizar o conceito das normas ISO, o mais adequado é considera-lo como um todo, claro está respeitando as diversas áreas para as quais elas se destinam. Ainda assim, não deixa de ser curioso o facto de, além de serem diversificadas, também são vocacionadas para produzir efeitos diferentes, isto é:

Na esfera do Consumidor/pessoas singular – elas visam garantir que os produtos e serviços sejam seguros, confiáveis e de alta qualidade.

Já na esfera das Empresas/pessoas coletivas – as normas internacionais ISO funcionam como ferramentas estratégicas que reduzem os custos, que minimizem os desperdícios, que eliminam os erros e que, concomitantemente, aumentam a produtividade. Ainda é preciso frisar, neste particular, que além de auxiliar as empresas a aceder aos novos mercados, a cilindrar os terrenos de jogos com vista atingir países em desenvolvimento, ainda vai mais longe ao roçarem as finalidades para as quais foram criadas. Nos dias que correm é perfeitamente percetível que as normas ISO facilitam e aprimoram a verificação da liberdade e da justiça no comércio mundial.

Em concreto, a própria jurisprudência em análise, trouxe a luz do dia uma noção das regras ISO, pois considerou-as como Standards ou regras internacionais que visam certificar que as empresas possuem determinadas práticas, procedimentos, instrumentos ou têm implementado certos sistemas e formas de organização interna, que lhes conferem determinadas competências. Em boa verdade são certificações que visam garantir determinados padrões de qualidade das empresas.


III. FUNDAMENTOS DOUTRINÁRIAS E JURISPRUDENCIAIS

Segue-se, tal como assinalamos supra, a análise propriamente dita do acórdão de STA, sem fazer, claro está, referências aos argumentos utilizados pelas partes, mas sim dedicar especial atenção a decisão.
Ora duma leitura honesta de todo este tracejado, parece resultar, inequivocamente, que a recorrente (A……..S.A) colocou as suas pretensões acima da ratio das exigências de certificações ISO, além de não saber situar o problema, se não vejamos:

1- Fez interpretações abusivas dos preceitos do CCP, ao desvirtuar por completo os conceitos e ao não as colocar nos tipos certos de procedimento e muito menos nas fases certas.

2- É preciso perceber a ratio das exigências de certificações ISO. Aqui torna imperativo furtar as palavras do Professor Miguel Assis Raimundo para explicar que o uso das tais restrições através da fixação normativa das valências de participação encontra a sua fundamentação na necessidade de manter um equilíbrio entre o valor do contrato, os custos do procedimento e a especificidade do objeto do contrato. 

Com efeito, a opção pelo procedimento onde é exigido um nível mínimo de capacidade técnica ou financeira, ou melhor dizendo, onde o princípio da igualdade é limitado pelo princípio do interesse público, prende-se com a preferência em promover os agentes económicos/concorrentes particularmente capazes, experientes ou sólidos. Alias tem sido a flexibilização firmada na jurisprudência nos acórdãos do Tribunal Constitucional nº 645/98 (LUÍS NUNES DE ALMEIDA), proc. 727/96 e no Ac. do TC nº16/99, proc. 817/96 relatado pela Professora Maria Fernanda Palma.

Sempre que a entidade adjudicante pretenda avaliar a capacidade técnica ou financeira dos concorrentes (sem prejuízo da capacidade eventualmente revelada em sede de habilitação) o procedimento adequado é o concurso limitado por prévia qualificação.

A fase de qualificação dos concorrentes (ou candidatos) serve para fazer uma primeira triagem que concede a garantia adicional da utilidade do procedimento. Só que alguns princípios basilares da contratação pública marcam a presença sempre, para afastar os exageros das exigências. 

Sobre o princípio da proporcionalidade, veja-se as questões discutidas no acórdão do TCAN de 25 de Março de 2010 (MEDEIROS DE CARVALHO), proc. 1257/09.7BEPRT, no qual alem dos requisitos de capacidade financeira, também foi considerado desproporcionado um requisito de capacidade técnica que exigia que a empresa de segurança a contratar ao menos 1.000 seguranças inscritos, sendo que o contrato só exigia 42. Também a mesma conclusão se chegou num outro acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte, de 22 de Abril de 2010, proc. 1327/09.1BEPRT, relatado por conselheiro RODRIGUES RIBEIRO, onde se julgou desproporcional exigir 600 seguranças inscritos quando na verdade, no contrato, só era necessário 8.

No que tange ao princípio da concorrência, veja-se o recente acórdão do TCAN, de 31 de Maio de 2013, Proc. 01370/BEBRG, no qual podemos destacar duas nuances: por um lado, o princípio da concorrência, impõe que ninguém possa ser impedido de deduzir ou apresentar a sua candidatura em procedimento concursal pelo facto deste se mostrar disciplinado e, por outro lado, que cada candidatura apresentada seja avaliada de per si, ou seja, de acordo com os seus méritos e deméritos intrínsecos, sem que possam ou que sejam valoradas quaisquer situações, qualidades, características ou outros elementos de facto relativos aos candidatos ou que exijam pronúncias ou emissões de declarações de vontade de entes terceiros que aqueles candidatos não controlem ou não possam controlar e que condicionam a possibilidade de candidatura ou interfiram com os critérios de avaliação das propostas. Está-se a chamar atenção para, no âmbito do concurso público, as entidades adjudicantes se concentrarem apenas na avaliação das propostas em si e não nas qualidades específicas das empresas concorrentes.

Existe uma dúvida enraizada no acórdão, trata-se de uma das interpretações abusivas que a recorrente fez e que coloca dúvidas ao leitor, tem que ver com a interpretação que deu ao artigo 81 / 6 no sentido de ser «uma via verde» para exigência de certificações ISO, quando na verdade não é. Ou seja, só se consegue acabar com a tal dúvida apoiando na doutrina da Margarida Olazabal Cabral que afirma ser «absolutamente claro que o artigo 132, por remissão do artigo 81, nº 6, ao permitir que o programa do concurso exija documentos de habilitação, não está a autorizar a que no concurso público se exijam requisitos de capacidade técnica».

Esta doutrina foi acolhida por Marco Real Martins e Miguel Assis Raimundo, que consideraram que seria, realmente, muito estranho que o legislador se preocupasse em retirar da tramitação do concurso público a possibilidade de diferenciar capacidade técnica e financeira, e depois viesse, de forma enviesada, acabar por consagrar resultado semelhante, com a agravante de que aqui seria uma qualificação pós adjudicação.

Finalmente repescamos uma posição, (Cfr. em documentos de habilitação e documentos de qualificação nos procedimentos de formação de contratos públicos, Marco Real Martins/Miguel Assis Raimundo, págs. 20 e 21.), que definitivamente esclareceu todas as dúvidas, ou seja: os comprovativos da certificação, em regra, não deveria ser solicitado pelas entidades adjudicante em sede de habilitação do adjudicatário, porquanto esse documento não será, em princípio, legalmente exigido para titular as habilitações necessárias à prestação dos serviços em causa. Por sua vez, quanto a questão de saber se estes mesmos documentos podem ser exigidos a título de documentos destinados à qualificação (que não o caso do acórdão), atentas as manifestações do princípio da proporcionalidade constantes do nº 1 e 3 do artigo 165 º do CCP, aqui sim a resposta é, em princípio, afirmativa; Veja-se nesse sentido o próprio artigo 165,n 1, in fine, quando refere os “sistemas de controlo de qualidade”, e alínea d), que se refere à “capacidade dos candidatos adotarem medidas de gestão ambiental no âmbito da execução do contrato a celebrar”. 

Conclui-se que neste último caso a entidade adjudicante disporá de uma discricionariedade considerável na seleção dos documentos que lhe permitam aferir o nível mínimo de capacidade técnica de candidatos, sempre em observância da exigência de conexão interna entre os elementos exigidos, os requisitos de capacidade técnica e financeira e o objecto do contrato.

Ao cabo e ao resto, a exigência de certificação por quaisquer normas que qualidade, em sede de habilitação só é consentida, em caso esteja diretamente relacionado com o objeto do contrato a celebrar.

IV. Posição Adotada

Após uma longa «lengalenga» o Supremo Tribunal Administrativo, avaliou e decidiu julgar improcedente os pedidos da recorrente (A…S.A) e consequentemente julgou: 

I- que a apresentação dos certificados ISO/IEC20000:2005, ISO/IEC27001:2005, IS09001:2008 e ISO 14001:2004, constitui uma exigência que não se relaciona com os requisitos legalmente exigidos para o exercício da actividade, mas que se relaciona com competências ou padrões de qualidade, ou seja, com a qualidade ou capacidade técnica das empresas; 

II- Não pode ser exigida num procedimento de concurso público em sede de habilitação a apresentação dos indicados certificados; 

III- Viola os princípios da estabilidade das regras concursais, da igualdade e da concorrência, a decisão de afastar a regra constante do Programa de Concurso que exigia a apresentação dos certificados ISO, em sede de requisitos de habilitação, já após o ato de adjudicação, com aproveitamento de todos os atos do concurso até essa fase

A curiosidade é claramente saber o que se diga desta decisão?

Na verdade, não podia deixar de reconhecer a intensidade das discussões que foram travadas no presente acórdão. O acórdão é de per si rico, na medida em que envolve um número considerado da doutrina e tem uma vasta lista de consulta da jurisprudência - o que torna relativamente simples a tarefa do julgador, pois as partes acabaram por destruir argumentos dumas as outras.

Ainda assim devo dizer que o STA andou bem, não só por ter colocado do lado certo mas, fundamentalmente, por ter valorizado todos os argumentos e ponderando todos os interesses em jogo. Repare que o Tribunal decidiu não validar a adjudicação para não frustrar as expetativas daqueles concorrentes que olharam para o programa do concurso e decidiram não participar por não estarem habilitados das certificações ISO, seria caricata uma decisão que não protegesse os interesses dos concorrentes que estiveram naquela situação. Na realidade, no concurso público, não há lugar a avaliação a capacidade técnica ou financeira dos concorrentes, para além do que formalmente possa resultar dos próprios documentos de habilitação legal, na medida em que a habilitação, de per si, é reveladora de uma determinada capacidade técnica (e em alguns casos, também financeira) do adjudicatário.

Para avaliação da capacidade técnica não podem ser exigidas provas específicas, no âmbito do concurso público. Duma leitura atenta e conjugada dos regimes prevalecentes dos artigos 51 ° e 81 °/ 6 CCP, resulta que está vedada à entidade adjudicante, a possibilidade de incluir no programa do procedimento do tipo concurso público, a exigência de qualquer documento de habilitação reportado à capacidade técnica ou econômica financeira dos concorrentes. Acresce a isso, o facto de os documentos exigíveis serem apenas os que forem demostrativos da detenção dos requisitos legais necessários ao exercício da atividade relevante. Ora em lado nenhum resulta uma obrigação legal de as empresas estarem na posse dos certificados acima referidos para poderem operar no mercado português, concisamente para fornecer os serviços postos a concurso.

Não se deve confundir o concurso público com o concurso limitado por prévia qualificação, muito menos se deve confundir os documentos de habilitação com os documentos de qualificação. Isto porque, em jeito de conclusão, julgamos que as certificações do que tanto se falou, só podem ser apreciados e exigidos em sede dum procedimento que possua uma fase prévia de qualificação. Ganhamos esta ousadia porque encontramos alicerces, no mesmo sentido, em todas as obras - algumas recentes - que tivemos o cuidado de elencar ao longo e nas bibliografias deste trabalho.




                                     DONE BY: Ricardo Vicente Lima da Costa e Silva.