Crime de Perigo Abstrato VS Crimes de Perigo Concreto
SUMÁRIO:
I. Introdução. II.
Colocação do Problema. III.
Crimes de Perigo Abstrato VS Crimes de Perigo Concreto. a)-Quanto a Exigência do Tipo. b)-Quanto
a Materialização. c)- Quanto a
Natureza. d)-Quanto a Repartição de
Tarefas entre o Legislador e o Luiz. IV-
A Terceira Via - Crime de Perigo Abstrato-Concreto.
V.
Exemplificação
e Posição Adotada.
I.
Introdução
O presente trabalho
pretende ser, primeiramente, o tema para início do debate no exame oral de
melhoria de Direito Penal IV, leccionado pelo Professor João Curado Neves e
também pretende ser um contributo para a dissipação das dúvidas sobre a figura
dos crimes de perigo, em concreto – a dicotomia que nela existe –
refere-se a confluência incessante entre aquilo que se deve perceber por crime
de perigo abstrato, dum lado, e por aquilo que se deve perceber como crime de
perigo concreto, doutro lado.
Julgamos ser
indispensável puxar algumas posições doutrinárias nas quais se encontram
firmadas critérios objectivos que promovem uma dissociação que põe cobro a
mitigação e que estabelecem, definitivamente, uma separação entre as duas
modalidades de crimes de perigo. Ainda, tendo em conta uma perspetiva
abrangente, incluímos neste trabalho um rescaldo sumaríssimo sobre aquilo que
por muitos se posiciona como a terceira figura dentro dos crimes de perigo,
está-se a falar de crime de perigo abstrato-concreto – que contem no seu núcleo
duro a transformação duma situação meramente hipotético numa situação
fortemente verificável, se quiser materializável.
Na verdade esta última
classificação foi renegada na doutrina alemã, por alguns juristas, que não lhe
reconheceram autonomia. Parafraseando o Professor José Faria Costa «os crimes
de perigo exigem pressuposto duma especial política criminal ou, talvez melhor,
reivindicam uma particular ponderação quanto às decisões político-criminais que
os sustentam enquanto formas interventoras na modelação do real
jurídico-social».
Os crimes de perigo
suscitam obviamente um problema de legitimidade atinente a restrição de
direitos fundamentais, na justa medida em que a sua concretização se relaciona
com a justa distribuição de ius puniendi. No final pretendemos apontar alguns
exemplos práticos de modos a ensaiar uma singela colocação das normas do código,
que são de perfeita inserção, nas três modalidades de crimes de perigo supra
citadas.
II.
Colocação do Problema
Numa perspetiva
minimalista podíamos começar por traçar e elencar as linhas distintivas entre
as duas figuras, só que parece-nos pertinente começar com um exemplo dum crime
contra genuinidade, onde vamos fazer uma retrospetiva do conteúdo do artigo na
versão inicial do código de 1982 e na versão actual na qual tentaremos
demonstrar a diferença de tratamento que existe entre ele e a legislação
especial. Estamos a referir o artigo 273 – na versão de 1982, que se configura
como artigo 282 °/ 1 do Código Penal (em diante CP) que encontra a semelhante
previsão no artigo 24° do Dec-Lei 28/84, de 20 de Janeiro, ora destacamos desde
já as frases de aproximação ou de distanciamento:
A versão de 1982 (artigo
273) inclui, além do perigo para a vida, o perigo de «grave lesão para a saúde
e integridade física alheias», no nº 1, e prescrevia no nº3 uma pena bastante
atenuada para o caso de o perigo para a saúde ou a integridade física a que se
referem nos números anteriores serem de pequena gravidade – estas disposições
foram revogadas na revisão de 1995, na qual se eliminou a distinção
quantitativa entre o perigo de grave lesão do nº 1 e o perigo de pequena
gravidade do nº 3.
Na versão revista/atual
- do artigo 282 º CP, sob epígrafe Corrupção de substâncias alimentares ou
medicinais colocamos a acento tônico na necessidade da «criação do perigo para
a vida ou para a integridade física de outrem».
Por seu turno o artigo
24 °, nº 1, do DL nº 28/84 veio suavizar, (o que é incompreensível na opinião
do Professor Augusto Silva Dias), ao exigir que os géneros alimentícios
destinado ao consumo não sejam suscetíveis de criar perigo para a vida e
integridade física alheias, ora isto revela uma danosidade social muito menor
do que o previsto nos dois artigos supra indicados.
Com efeito, em ambos os
artigos, os bens jurídicos protegidos pela incriminação são a vida e a
integridade física de outrem, mas (e é isso que justifica a chamada à colação
deste exemplo ao trabalho), as previsões são diversas e as respectivas
punibilidades também.
A próxima questão a ser
levantada é sem dúvida, em quê que o atual artigo 282 º difere do artigo 24, nº
1 do DL 28/84 ?
Muito sucintamente diremos
que dum lado, o artigo 282 do CP tem como especialidade em relação ao crime do
artigo 24 do DL 28/84, a exigência de idoneidade para criar um perigo para a
vida ou para a saúde. No fundo é uma fase mais avançada do processo de
lesão. Já doutro lado, o crime previsto no artigo 24, nº 1 do DL 28/84 só é
punível quando não haja sequer perigo para a vida ou integridade física. O
crime de corrupção das substâncias alimentares ou medicinais é um crime de perigo concreto (quanto
ao grau de lesão dos bens jurídicos protegidos) e é um crime de resultado (quanto a forma de consumação do ataque ao
objeto da ação) – é o que resulta do entendimento do Paulo Pinto de
Albuquerque, que obteve o acolhimento por parte do Professor Augusto Silva
Dias.
Feita essa mini-comparação
pretende-se ilustrar que mesmo no âmbito duma previsão de duas normas que têm
como função tutelar o mesmo bem jurídico existe a possibilidade de ter
orientações diversas, pois não será escusado a perplexidade que nos
surpreenderá quando temos que lidar com a dicotomia existente nos crimes de
perigo, no qual se podia pretender que o legislador nos facilitasse a tarefa e
tratasse-o como uma única modalidade já que os bens protegidos são quase das
mesmas espécies. Ora tal não foi feito pelo que cabe-nos traçar, infra, as
distinções.
III.
Crimes de Perigo Abstrato VS Crimes de Perigo Concreto
a)-
Quanto a Exigência do Tipo
Na aceção do Professor Augusto Silva Dias sobre o – Crime
de Perigo Concreto – o tipo exige a comprovação de uma situação concreta de
perigo para um ou vários bens jurídicos, desligada mas objectivamente imputável
à ação. Ao passo que – No Crime de Perigo Abstrato – o tipo limita-se a
descrever uma conduta genericamente perigosa, de acordo com os dados
estatísticos ou regras de experiência da vida quotidiana, ou seja, o que se
presume aqui é tão só o caráter perigoso da própria ação e não a realização de
um resultado de perigo.
b)-
Quanto a Materialização
Na aceção de Marta Felino Rodrigues no – Crime de
Perigo Concreto - exige-se a verificação de um resultado típico oriundo da
criação de uma situação de perigo concreto para um objeto tipicamente protegido.
A realização do respetivo tipo está, então, dependente de uma intervenção judicial,
subordinada à prova da ocorrência. Enquanto no Crime de Perigo Abstrato
a verificação daqueles elementos (resultado típico e intervenção judicial) não
são exigidos.
c)-
Quanto a Natureza
O Crime de Perigo
Concreto é um crime material, ao passo que o Crime de
Perigo Abstrato é um crime formal.
d)-
Quanto a Repartição de Tarefas entre o Legislador e o Luiz
Na consideração de Schröder – nos Crimes de Perigo
Abstrato – os indícios de perigosidade são determinados exclusivamente pelo
legislador, enquanto nos Crimes de Perigo Concreto, a decisão sobre a
perigosidade da ação ou a ocorrência do resultado de perigo, respectivamente,
não é tomado pelo legislador mas cabe somente ao juiz.
O Professor Augusto Silva Dias posicionou contra esta separação de
poderes, porquanto considerou que a interpretação sobre a modalidade típica do
perigo a ser determinado pelo juiz só será possível após a indicação fornecida
pelo legislador no texto incriminador. Ainda porque o juiz tem sempre que
verificar a existência do perigo, fá-lo-á de forma negativa (impossibilidade geral de lesão no caso concreto)
quando se trata de perigo abstrato e de forma
positiva (séria possibilidade de lesão) quando se trata de perigo concreto.
Constatamos que a
opinião de Schröder não colhe face os argumentos do Silva Dias, por isso
aderimos a posição deste último, pois a diferença entre o perigo abstrato e
concreto não é determinado pela intervenção do juiz ou não, mas sim pelo tipo
de juízo que ele tem de efetuar (positivo ou negativo/geral ou concreto).
IV.
A Terceira Via - Crime de Perigo Abstrato-Concreto
Na Alemanha, Claus Roxin
no seguimento de Horn, recusa dar ao Crime de Perigo Abstrato-Concreto o sentido
de uma classificação autónoma dentro dos crimes de perigo e considera a sua
interpretação, como «altamente controversa» compreendendo-o nuns casos como
perigo concreto e noutros como perigo abstrato especial, contudo aceitou a
correspondência das noções de perigo abstrato-concreto e de aptidão.
Existe uma certa
flutuação de conceitos na dogmática penal a respeito dessa classe de
infracções, por isso, se bem julgamos, a doutrina anda entre uma visão
bipartida dos crimes de perigo (conforme resulta implicitamente da doutrina de
Roxin) e uma visão tripartida dos crimes de perigo (de acordo com a construção
de Schröder).
Em Portugal não existe
dúvidas, a tripartição dos crimes de perigo é maioritariamente acolhida, ainda
que com preferências de cada autor em denominar a terceira classificação (os
chamados crimes de perigo abstrato-concreto). Existem, inclusive, tendências de
alguns autores em ampliar a classificação, são os casos do Professor Paulo Sousa Mendes, que falou em crimes de perigo
abstrato potencial, do Professor José de
Faria Costa, que falou em crimes de perigo (concreto) de proteção
antecipada e finalmente do Professor
Cavaleiro de Ferreira, que anunciou uma terceira espécie: os crimes de
«perigo de perigo» ou «risco de perigo».
O crime de perigo
abstrato-concreto é tratado, em Portugal, como uma classificação autónoma,
aliás é a orientação dos Professores Figueiredo Dias e Rui Carlos Pereira, este
último aponta como exemplos de crimes de perigo abstrato-concreto os artigos:
144 °, n º 2 (Ofensas corporais com dolo de perigo), 272 °, n º 1 (Deterioração
de alimentos destinados a animais), e 273 °, n º 1 e 2 (Corrupção de
substâncias alimentares ou para fins medicinais), ambos da versão originária do
Código Penal de 1982.
Nestes crimes deverá
averiguar-se positivamente, se a conduta é genericamente perigosa, no actual
regime consta uma exigência da adequação social inerente ao tipo, ou seja a
ação deve ser adequada a produzir resultado.
V.
Exemplificação e Posição Adotada
Doutrinariamente costuma
ser apontado como exemplos dos três tipos de crimes de perigo, os artigos 291 °
CP, 292 ° CP e 139 ° CP, sendo o primeiro respeitante aos crimes de perigo
concreto; o segundo atinente aos crimes de perigo abstrato e o último diz
respeito aos crimes de perigo abstrato-concreto. Chegados aqui, torna
pertinente delimitar, de concreto, o tipo de juízo que se faz em cada uma
destas classificações, assim:
▬
Nos crimes de perigo concreto – o juízo
implicará a identificação de uma situação em que a lesão do bem jurídico surge
como possível ou provável, destacável logicamente da própria ação e conexionada
causalmente com ela.
O artigo 291 ° é um
exemplo paradigmático do crime de perigo concreto, tem como epígrafe «Condução
perigosa do veículo rodoviário», os bens jurídicos protegidos pela sua
incriminação são a vida, a integridade física e o património de outrem. É um
crime de perigo concreto – quanto ao grau de lesão dos bens jurídicos
protegidos e, simultaneamente, é um crime de resultado – quanto a forma de
consumação do ataque ao objeto da ação, pois a norma além de descrever a
conduta vedada, ainda exigiu a existência da criação efectiva do perigo para a
vida, integridade física ou bens patrimoniais alheios de valor elevado. No
fundo a norma não só contenta com a presunção ou inferências lógicas da
perigosidade, antes exige a verificação do resultado concreto, ou seja, tem que
existir a consumação.
▬Nos Crimes de Perigo Abstrato
– há lugar a um juízo negativo de perigo pelo qual se deverá averiguar se o
comportamento é insuscetível de gerar qualquer risco de lesão do bem jurídico
tutelado. Na verdade o que se presume aqui é o caráter perigoso da própria ação
e não a realização de um resultado de perigo.
Encontra o seu
tratamento cimeiro no artigo 292 ° CP, sob epígrafe «Condução de veículo em
estado de embriaguez ou sob a influencia de estupefacientes ou substancias
psicotrópicas», a sua incriminação tem em vista a proteção da vida, integridade
física e património de outrem. É um crime de perigo abstrato – quanto ao grau
de lesão dos bens jurídicos protegidos e é crime de mera atividade – quanto a
forma de consumação do ataque ao objeto da ação. O seu tipo subjectivo admite
qualquer modalidade de dolo e negligência, aliás a incriminação pune com a
mesma moldura o crime cometido na forma dolosa e na forma negligente.
▬Finalmente
nos Crimes de Perigo Abstrato-Concreto
– deverá averiguar-se positivamente a perigosidade genérica da conduta.
Atualmente vem previsto,
por excelência, no artigo 139 ° CP, cuja epígrafe é «Propaganda do suicídio» destina-se
a proteger a vida humana, a preservação do bem estar coletivo e, máxime, a
manutenção de salus pública.
Comporta caraterística de crimes de perigo
abstrato concreto – quanto ao bem jurídico e também um crime de mera atividade
- quanto ao objeto da ação. Nele a tentativa não é punível. No corpo do artigo
é exigida a adequação, no sentido da ação ser adequado, idóneo ou suficiente
para provocar o suicídio.
Esta adequação deve ser
entendida, segundo Professor João Curado
Neves, não como consequência, mas como
qualidade do facto, no mesmo sentido em que se fala em adequação no artigo 10º,
ou de idoneidade no artigo 22º, nº 2, alínea b) do CP.
DONE
BY: Ricardo Vicente Lima da Costa e Silva.