quinta-feira, 17 de outubro de 2013

DESCOMPLICAÇÃO DA DICOTOMIA NOS CRIMES DE PERIGO




Crime de Perigo Abstrato VS Crimes de Perigo Concreto





SUMÁRIO:
I. Introdução. II. Colocação do Problema. III. Crimes de Perigo Abstrato VS Crimes de Perigo Concreto. a)-Quanto a Exigência do Tipo. b)-Quanto a Materialização. c)- Quanto a Natureza. d)-Quanto a Repartição de Tarefas entre o Legislador e o Luiz. IV- A Terceira Via - Crime de Perigo Abstrato-Concreto. 
V. Exemplificação e Posição Adotada.                                




I. Introdução

O presente trabalho pretende ser, primeiramente, o tema para início do debate no exame oral de melhoria de Direito Penal IV, leccionado pelo Professor João Curado Neves e também pretende ser um contributo para a dissipação das dúvidas sobre a figura dos crimes de perigo, em concreto – a dicotomia que nela existe – refere-se a confluência incessante entre aquilo que se deve perceber por crime de perigo abstrato, dum lado, e por aquilo que se deve perceber como crime de perigo concreto, doutro lado.

Julgamos ser indispensável puxar algumas posições doutrinárias nas quais se encontram firmadas critérios objectivos que promovem uma dissociação que põe cobro a mitigação e que estabelecem, definitivamente, uma separação entre as duas modalidades de crimes de perigo. Ainda, tendo em conta uma perspetiva abrangente, incluímos neste trabalho um rescaldo sumaríssimo sobre aquilo que por muitos se posiciona como a terceira figura dentro dos crimes de perigo, está-se a falar de crime de perigo abstrato-concreto – que contem no seu núcleo duro a transformação duma situação meramente hipotético numa situação fortemente verificável, se quiser materializável.

Na verdade esta última classificação foi renegada na doutrina alemã, por alguns juristas, que não lhe reconheceram autonomia. Parafraseando o Professor José Faria Costa «os crimes de perigo exigem pressuposto duma especial política criminal ou, talvez melhor, reivindicam uma particular ponderação quanto às decisões político-criminais que os sustentam enquanto formas interventoras na modelação do real jurídico-social».

Os crimes de perigo suscitam obviamente um problema de legitimidade atinente a restrição de direitos fundamentais, na justa medida em que a sua concretização se relaciona com a justa distribuição de ius puniendi. No final pretendemos apontar alguns exemplos práticos de modos a ensaiar uma singela colocação das normas do código, que são de perfeita inserção, nas três modalidades de crimes de perigo supra citadas.


II. Colocação do Problema

Numa perspetiva minimalista podíamos começar por traçar e elencar as linhas distintivas entre as duas figuras, só que parece-nos pertinente começar com um exemplo dum crime contra genuinidade, onde vamos fazer uma retrospetiva do conteúdo do artigo na versão inicial do código de 1982 e na versão actual na qual tentaremos demonstrar a diferença de tratamento que existe entre ele e a legislação especial. Estamos a referir o artigo 273 – na versão de 1982, que se configura como artigo 282 °/ 1 do Código Penal (em diante CP) que encontra a semelhante previsão no artigo 24° do Dec-Lei 28/84, de 20 de Janeiro, ora destacamos desde já as frases de aproximação ou de distanciamento:

A versão de 1982 (artigo 273) inclui, além do perigo para a vida, o perigo de «grave lesão para a saúde e integridade física alheias», no nº 1, e prescrevia no nº3 uma pena bastante atenuada para o caso de o perigo para a saúde ou a integridade física a que se referem nos números anteriores serem de pequena gravidade – estas disposições foram revogadas na revisão de 1995, na qual se eliminou a distinção quantitativa entre o perigo de grave lesão do nº 1 e o perigo de pequena gravidade do nº 3.

Na versão revista/atual - do artigo 282 º CP, sob epígrafe Corrupção de substâncias alimentares ou medicinais colocamos a acento tônico na necessidade da «criação do perigo para a vida ou para a integridade física de outrem».

Por seu turno o artigo 24 °, nº 1, do DL nº 28/84 veio suavizar, (o que é incompreensível na opinião do Professor Augusto Silva Dias), ao exigir que os géneros alimentícios destinado ao consumo não sejam suscetíveis de criar perigo para a vida e integridade física alheias, ora isto revela uma danosidade social muito menor do que o previsto nos dois artigos supra indicados.

Com efeito, em ambos os artigos, os bens jurídicos protegidos pela incriminação são a vida e a integridade física de outrem, mas (e é isso que justifica a chamada à colação deste exemplo ao trabalho), as previsões são diversas e as respectivas punibilidades também.

A próxima questão a ser levantada é sem dúvida, em quê que o atual artigo 282 º difere do artigo 24, nº 1 do DL 28/84 ?

Muito sucintamente diremos que dum lado, o artigo 282 do CP tem como especialidade em relação ao crime do artigo 24 do DL 28/84, a exigência de idoneidade para criar um perigo para a vida ou para a saúde. No fundo é uma fase mais avançada do processo de lesão. Já doutro lado, o crime previsto no artigo 24, nº 1 do DL 28/84 só é punível quando não haja sequer perigo para a vida ou integridade física. O crime de corrupção das substâncias alimentares ou medicinais é um crime de perigo concreto (quanto ao grau de lesão dos bens jurídicos protegidos) e é um crime de resultado (quanto a forma de consumação do ataque ao objeto da ação) – é o que resulta do entendimento do Paulo Pinto de Albuquerque, que obteve o acolhimento por parte do Professor Augusto Silva Dias.  

Feita essa mini-comparação pretende-se ilustrar que mesmo no âmbito duma previsão de duas normas que têm como função tutelar o mesmo bem jurídico existe a possibilidade de ter orientações diversas, pois não será escusado a perplexidade que nos surpreenderá quando temos que lidar com a dicotomia existente nos crimes de perigo, no qual se podia pretender que o legislador nos facilitasse a tarefa e tratasse-o como uma única modalidade já que os bens protegidos são quase das mesmas espécies. Ora tal não foi feito pelo que cabe-nos traçar, infra, as distinções.


III. Crimes de Perigo Abstrato VS Crimes de Perigo Concreto


a)- Quanto a Exigência do Tipo

Na aceção do Professor Augusto Silva Dias sobre o – Crime de Perigo Concreto – o tipo exige a comprovação de uma situação concreta de perigo para um ou vários bens jurídicos, desligada mas objectivamente imputável à ação. Ao passo que – No Crime de Perigo Abstrato – o tipo limita-se a descrever uma conduta genericamente perigosa, de acordo com os dados estatísticos ou regras de experiência da vida quotidiana, ou seja, o que se presume aqui é tão só o caráter perigoso da própria ação e não a realização de um resultado de perigo.

b)- Quanto a Materialização

Na aceção de Marta Felino Rodrigues no – Crime de Perigo Concreto - exige-se a verificação de um resultado típico oriundo da criação de uma situação de perigo concreto para um objeto tipicamente protegido. A realização do respetivo tipo está, então, dependente de uma intervenção judicial, subordinada à prova da ocorrência. Enquanto no Crime de Perigo Abstrato a verificação daqueles elementos (resultado típico e intervenção judicial) não são exigidos.

c)- Quanto a Natureza   

O Crime de Perigo Concreto é um crime material, ao passo que o Crime de Perigo Abstrato é um crime formal.

d)- Quanto a Repartição de Tarefas entre o Legislador e o Luiz

Na consideração de Schröder – nos Crimes de Perigo Abstrato – os indícios de perigosidade são determinados exclusivamente pelo legislador, enquanto nos Crimes de Perigo Concreto, a decisão sobre a perigosidade da ação ou a ocorrência do resultado de perigo, respectivamente, não é tomado pelo legislador mas cabe somente ao juiz.

O Professor Augusto Silva Dias posicionou contra esta separação de poderes, porquanto considerou que a interpretação sobre a modalidade típica do perigo a ser determinado pelo juiz só será possível após a indicação fornecida pelo legislador no texto incriminador. Ainda porque o juiz tem sempre que verificar a existência do perigo, fá-lo-á de forma negativa (impossibilidade geral de lesão no caso concreto) quando se trata de perigo abstrato e de forma positiva (séria possibilidade de lesão) quando se trata de perigo concreto.

Constatamos que a opinião de Schröder não colhe face os argumentos do Silva Dias, por isso aderimos a posição deste último, pois a diferença entre o perigo abstrato e concreto não é determinado pela intervenção do juiz ou não, mas sim pelo tipo de juízo que ele tem de efetuar (positivo ou negativo/geral ou concreto).


IV. A Terceira Via - Crime de Perigo Abstrato-Concreto

Na Alemanha, Claus Roxin no seguimento de Horn, recusa dar ao Crime de Perigo Abstrato-Concreto o sentido de uma classificação autónoma dentro dos crimes de perigo e considera a sua interpretação, como «altamente controversa» compreendendo-o nuns casos como perigo concreto e noutros como perigo abstrato especial, contudo aceitou a correspondência das noções de perigo abstrato-concreto e de aptidão.  

Existe uma certa flutuação de conceitos na dogmática penal a respeito dessa classe de infracções, por isso, se bem julgamos, a doutrina anda entre uma visão bipartida dos crimes de perigo (conforme resulta implicitamente da doutrina de Roxin) e uma visão tripartida dos crimes de perigo (de acordo com a construção de Schröder).

Em Portugal não existe dúvidas, a tripartição dos crimes de perigo é maioritariamente acolhida, ainda que com preferências de cada autor em denominar a terceira classificação (os chamados crimes de perigo abstrato-concreto). Existem, inclusive, tendências de alguns autores em ampliar a classificação, são os casos do Professor Paulo Sousa Mendes, que falou em crimes de perigo abstrato potencial, do Professor José de Faria Costa, que falou em crimes de perigo (concreto) de proteção antecipada e finalmente do Professor Cavaleiro de Ferreira, que anunciou uma terceira espécie: os crimes de «perigo de perigo» ou «risco de perigo».

O crime de perigo abstrato-concreto é tratado, em Portugal, como uma classificação autónoma, aliás é a orientação dos Professores Figueiredo Dias e Rui Carlos Pereira, este último aponta como exemplos de crimes de perigo abstrato-concreto os artigos: 144 °, n º 2 (Ofensas corporais com dolo de perigo), 272 °, n º 1 (Deterioração de alimentos destinados a animais), e 273 °, n º 1 e 2 (Corrupção de substâncias alimentares ou para fins medicinais), ambos da versão originária do Código Penal de 1982.   

Nestes crimes deverá averiguar-se positivamente, se a conduta é genericamente perigosa, no actual regime consta uma exigência da adequação social inerente ao tipo, ou seja a ação deve ser adequada a produzir resultado.


V. Exemplificação e Posição Adotada

Doutrinariamente costuma ser apontado como exemplos dos três tipos de crimes de perigo, os artigos 291 ° CP, 292 ° CP e 139 ° CP, sendo o primeiro respeitante aos crimes de perigo concreto; o segundo atinente aos crimes de perigo abstrato e o último diz respeito aos crimes de perigo abstrato-concreto. Chegados aqui, torna pertinente delimitar, de concreto, o tipo de juízo que se faz em cada uma destas classificações, assim:

Nos crimes de perigo concreto – o juízo implicará a identificação de uma situação em que a lesão do bem jurídico surge como possível ou provável, destacável logicamente da própria ação e conexionada causalmente com ela.

O artigo 291 ° é um exemplo paradigmático do crime de perigo concreto, tem como epígrafe «Condução perigosa do veículo rodoviário», os bens jurídicos protegidos pela sua incriminação são a vida, a integridade física e o património de outrem. É um crime de perigo concreto – quanto ao grau de lesão dos bens jurídicos protegidos e, simultaneamente, é um crime de resultado – quanto a forma de consumação do ataque ao objeto da ação, pois a norma além de descrever a conduta vedada, ainda exigiu a existência da criação efectiva do perigo para a vida, integridade física ou bens patrimoniais alheios de valor elevado. No fundo a norma não só contenta com a presunção ou inferências lógicas da perigosidade, antes exige a verificação do resultado concreto, ou seja, tem que existir a consumação.

Nos Crimes de Perigo Abstrato – há lugar a um juízo negativo de perigo pelo qual se deverá averiguar se o comportamento é insuscetível de gerar qualquer risco de lesão do bem jurídico tutelado. Na verdade o que se presume aqui é o caráter perigoso da própria ação e não a realização de um resultado de perigo.

Encontra o seu tratamento cimeiro no artigo 292 ° CP, sob epígrafe «Condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influencia de estupefacientes ou substancias psicotrópicas», a sua incriminação tem em vista a proteção da vida, integridade física e património de outrem. É um crime de perigo abstrato – quanto ao grau de lesão dos bens jurídicos protegidos e é crime de mera atividade – quanto a forma de consumação do ataque ao objeto da ação. O seu tipo subjectivo admite qualquer modalidade de dolo e negligência, aliás a incriminação pune com a mesma moldura o crime cometido na forma dolosa e na forma negligente.

Finalmente nos Crimes de Perigo Abstrato-Concreto – deverá averiguar-se positivamente a perigosidade genérica da conduta.

Atualmente vem previsto, por excelência, no artigo 139 ° CP, cuja epígrafe é «Propaganda do suicídio» destina-se a proteger a vida humana, a preservação do bem estar coletivo e, máxime, a manutenção de salus pública. 

Comporta caraterística de crimes de perigo abstrato concreto – quanto ao bem jurídico e também um crime de mera atividade - quanto ao objeto da ação. Nele a tentativa não é punível. No corpo do artigo é exigida a adequação, no sentido da ação ser adequado, idóneo ou suficiente para provocar o suicídio.

Esta adequação deve ser entendida, segundo Professor João Curado Neves, não como consequência, mas como qualidade do facto, no mesmo sentido em que se fala em adequação no artigo 10º, ou de idoneidade no artigo 22º, nº 2, alínea b) do CP. 

                                    
                                 DONE BY: Ricardo Vicente Lima da Costa e Silva.

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