Ultimamente tenho vindo a reflectir seriamente e com muita preocupação a política de austeridade que a maioria dos governos europeus estão a implementar (mormente nos países ditos periféricos do continente, entre os quais Portugal, Espanha, Itália e Grécia) como sendo a primeira opção política com vista a satisfazer as exigências dos mercados financeiros e consequentemente fazer face aos elevados défices nas contas públicas nacionais, que direccionam alguns países para a miséria e a bancarrota.
(Pensamento escrito por Térsio Vieira, extraído no seu blog "As Verdades").
As medidas de austeridade não implicam por si só a infelicidade humana, nem tão pouco uma tragédia como prima facie poderão aparentar. Um homem de virtudes é um homem de austeridade. O problema coloca-se quando as ditas medidas de austeridade são impostas de forma arbitrária e obrigatória, ao ponto de porem em causa certos direitos que outrora foram adquiridos com espírito de sacrifício e de luta. Aqui sim, a austeridade deixa de ter a legitimidade de que poderia beneficiar.
A questão que se levanta perante todas estas famosas medidas de austeridade que temos vindo assistir diariamente na zona euro, é a de saber até que ponto podemos considerá-las de interesse público, uma vez que os seus efeitos nocivos têm prejudicado drasticamente inúmeras empresas, pessoas, famílias, conduzindo-as para o flagelo da miséria e do desemprego, sem verem no horizonte alternativas convincentes para reverterem o quadro da situação em que se encontram mergulhadas.
E mais: há ainda a questão de saber se o interesse público deve sempre sobrepor-se (mesmo sendo cegamente) aos interesses dos particulares. A meu ver, nem sempre tal pode acontecer, sobretudo quando se toca os núcleos de direitos fundamentais, não obstante reconhecer que em determinadas situações os interesses dos particulares devem ceder perante os interesses públicos, por exemplo quando estamos perante um Estado de Necessidade Nacional, que requer de todos os cidadãos um esforço adicional, porque isso é saudável e fundamental numa Sociedade, contando que os direitos fundamentais não sejam postos em causa.
A concepção política que os governos da União Europeia têm adoptado na sua actuação para consolidar as inflexíveis metas orçamentais, não se distancia do modelo preconizado pelo filósofo alemão Hegel, que ficou conhecido como a Dupla Face, apelidado pelos moralistas do século XVII e XVIII como Astucia da Razão, que se traduz num artifício interpretativo hipostasiado, através do qual se apreciaria o efeito colectivamente benéfico da alienação individual.
Na filosofia hegeliana está claramente patente a ideia de que o Estado deve procurar acima de tudo preservar a universalidade, elevando-se acima dos interesses corporativos e da sociedade civil, integrando em si os interesses particulares e os interesses colectivos, isto em termos tais que ambos os interesses apenas adquirem plena satisfação no Estado. Com efeito, vai ainda mais longe ao ponto de salvaguardar contraditoriamente os interesses particulares das colectividades integrantes da sociedade civil deverem estar subordinados ao interesse superior do Estado. Com a concepção de Hegel podemos concluir uma completa divinização do papel de Estado na esfera jurídica dos particulares e ao mesmo tempo passando uma ideia de transpersonalismo do indivíduo dentro do Estado.
Hegel, numa única formulação, tanto hipervaloriza o Estado como o indivíduo, este último como razão última da intervenção daquele. Isto é, defende uma coisa para depois voltar a defender o seu contrário. Por isso, tal como a A dupla Face de Hegel, há um cunho ideológico por detrás de todas estas medidas de austeridade que temos vindo assistir, que se manifestam claramente em absolutizar o papel de Estado e procurar em simultâneo evidenciar a supremacia do indivíduo dentro do mesmo Estado. Uma contradição em princípio insanável.
Os argumentos esgrimidos pelos governos europeus para justificar as suas políticas de austeridade, prendem-se sobretudo com a ideia de defender os interesses públicos e garantir as melhores condições de vida para os seus cidadãos. Por outras palavras, o governo reconhece o valor sagrado dos direitos humanos e dos particulares, mas decide deliberadamente violá-los com o argumento de que estão em causa os valores superiores dos interesses públicos. Agora, podemos interrogar: até que ponto a afectação dos direitos aos particulares se poderá traduzir na defesa dos interesses públicos? Uma boa questão para reflexão.
Sem margem para dúvida, sou completamente a favor da alienação individual em favor dos interesses públicos, dado que isso é indispensável para que o homem sobreviva e prospere colectivamente, desde que isso não ponha em causa a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais a ela inerente. E, tal como adverte sabiamente um ilustre jurisprudente e com bastante razão, é a dignidade da pessoa humana viva e concreta e os direitos fundamentais dela decorrentes que justificam o Estado e a Constituição e não o Estado ou a Constituição que outorgam ou justificam a dignidade da pessoa humana e os direitos humanos.
(Pensamento escrito por Térsio Vieira, extraído no seu blog "As Verdades").
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